Crónica de Alexandre Honrado – Em que data foi a peste negra?

Alkexandre Honrado

Em que data foi a peste negra?
         Por Alexandre Honrado

 

Porque será que a esmagadora maioria da população planetária afetada, há cem anos exatamente, por uma pandemia que matou milhares de milhões de seres humanos lançou sobre a história um manto pesado de esquecimento?

No mesmo século XX sofreu, a mesma população da Terra, a I Guerra Mundial, a II Guerra Mundial e barbaridades de menor escala como a guerra Russo-Japonesa, a Guerra das Balcãs, a Guerra Civil Espanhola, de Franco, a Guerra Colonial, de Salazar, a Revolução Iraniana de Khomeni, ou a Russa de Lénine, o Holodomor, o holocausto ucraniano, encabeçado por Estaline, a Guerra Civil, o Grande Salto Adiante ou a Revolução Cultural protagonizados por Mao Tse Tung, a Guerra Fria, a Guerra das Coreias, os conflitos israelo-árabes, a guerra de Yom Kipur, a guerrilha do Araguaia, a primeira guerra da Chechénia, a guerra do Golfo, a guerra da Bósnia, tudo isto numa soma de milhões e milhões de vítimas, a perder de conta.

São apenas algumas das matanças do século passado, o mais sangrento de todos os séculos, e houve mais, servem estas porém para dar alguns exemplos, todos repugnantemente sangrentos, da corrida humana pelo caos que é a sua imbecilidade crónica.

Porque será que a memória humana diluiu cada um destes episódios, que as novas gerações desconhecem na sua totalidade, despreocupadamente, como se não fossem filhos de uma história que, mais ou menos diretamente, os afetou e limitou?

94287281 244481093365045 3530633129297444864 nA ignorância cultural é uma das formas com que os povos se mascaram, de modo a sobreviver. Por detrás da máscara o espirro ocorre mas parece impune. A cabeça na areia é quase uma proteção.

A amnésia transcultural permite ao povo migrante – que foge sempre da barbaridade do seu país natal (fome, guerra, são as principais causas da partida) – fazer crescer uma nova dinâmica noutro local qualquer que a generosidade de alguns possa permitir-lhe. A ideia humanista de que todos temos direito à terra, isto é, ao chão que pisamos, é uma utopia.

A ameaça em que vivemos hoje – a da morte silenciosa, confinados e à espera do ataque de um vírus inexplicável – só poderá sarar num tempo futuro, exatamente no ponto em que a memória dilua o nosso medo. Por agora, os mais irresponsáveis, acreditam que a morte só ocorre aos outros e que a doença não o atingirá – e que pode sair de casa logo que o sol o convide e o regime não o puna em demasia.

Vão abrir-se as portas. Da emergência vamos para a calamidade. Que maravilha! Que passo em frente!

As cobaias vão ser os mais pequenos – voltam às suas creches que os pais têm de teletrabalhar!  –; e os mais jovens, pré-universitários que não conseguem aprender em casa e têm de ir obrigatoriamente à escola encher-se de sapiência (que não reterão para além dos exames e que as universidades reconhecerão pela média e não pela essência); e os professores, carne para canhão que tendo já enfrentado tudo podem muito bem arriscar-se heroicamente para o confronto derradeiro, o de lutar com o invisível,  o imprevisível e o inadiável.

A memória, felizmente, irá esquecer tudo isto, porque não há memória sem esquecimento. Vimo-lo bem nos inquéritos parlamentares aos que eram suspeitos de burla, corrupção, roubo e outros crimes passageiros.

Um dia, os nossos netos não terão a menor ideia de que coisa foi essa do Covid-19, menos ainda dos mortos na frente colonial, nem de figurinhas de opereta assassina, carrascos da humanidade como Hitler, Mussolini, Salazar, Franco, Estaline, Mao, Ceauşescu, Todor Zhivkov, Pol Pot, Kublai Khan, Imperatriz Cixi, Leopoldo (segundo),Chiang Kai-shek, Gêngis Khan, Hideki Tojo, Jorge Videla, Jânio Quadros, Médici, Pinochet, Kim Jong-un, Trump ou Bolsonaro (pequena lista para enumerar alguns dos mais repugnantes que ora me ocorrem).

Em que data foi a peste negra? Não sei, nem me interessa. Esqueci-me.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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