Crónica de Alexandre Honrado – É um resfriadinho (comparado com a loucura de alguns)

Alkexandre Honrado

É um resfriadinho
(comparado com a loucura de alguns)

 

Doem-me os sentidos.

Repete-se em eco aos gritos a palavra Whuan, mas não faz muito sentido.

Um vírus não se fabrica, nem se exporta assim. E todas as teorias da conspiração são possíveis. O terror instala-se. Mas não se instala porque morrermos, ou porque vemos morrer, mas porque vemos que alguns querem safar-se, salvar a sua pele, deixando os mais desprotegidos ou impreparados, os mais pobres e os menos preparados, para a pilha que arda, para o forno crematório, não é a primeira vez, o mundo é feito destas taras e impulsionado pelos mais tarados. São esses que querem ser os herdeiros do nosso vasto mundo, para fazerem de nós os escravos do seu pequeno mundo.

Aperta-se-me o sangue, falta-me o ar pelo ar que nos falta.

A palavra que antes era Whuan é agora Portugal, é o mundo inteiro, os traidores atacam e os altruístas lutam na primeira fila – as trincheiras sempre foram ocupadas pelos jovens mais extraordinários, que seria do nosso mundo sem as guerras que nos antecederam?

Alertam-me que o pior virá depois. Os nacionalistas produzirão arrebatamentos e magias encantatórias, assim se erguem os Hitlers e outros assassinos, virão ocupar o lugar dos que defendem um lugar para todos, este espaço mesmo utópico em que as democracias, pelo menos os democratas mais sinceros, exaltam os seres humanos e não a repressão que os acorrente.

Dizem-me que depois disto podem acabar as nações, mas as nações, na história do mundo, são coisas tão recentes… Não tínhamos formatos assim antes das revoluções que nos trouxeram dignidade – a sangrenta Revolução Francesa, a violenta, mas mais branda aparentemente, Revolução Americana. Nada éramos destes países que agora conhecemos, mesmo sabendo que Portugal tem estes séculos todos de história. Já não somos aquela fragilidade de fraco império entre impérios frágeis, mais fortes que o nosso. Já não dependemos de colónias que sempre mal amámos.  Somos periféricos, atlânticos, quase europeus, voltámos ao lugar de onde partimos, à caça, há 500 anos, e todavia também somos esse povo pouco uniforme e nuclear, dotado de uma resistência enorme e de uma capacidade multicultural inesperada.

O temor de contagiar o outro veio reproduzir uma nova dimensão de liberdade.

Tínhamos caminhado nos últimos tempos para a consagração do ser individual, aquele que pedia avidamente que gostassem dele nas redes sociais, e agora somos individuo isolado na cela restrita do confinamento. E todavia é aqui que criamos, amamos, mostramo-nos como uma candeia na noite devidamente iluminada. Fazemo-lo como nunca.

Somos indestrutíveis, dizemos aos outros. E mesmo que os poderosos nos queiram confinar não há maior liberdade do que a do ser humano que se libertou. É que nem assim mesmo somos confinados, vejam as nossas mãos sem algemas que aplaudem e que se lavam diariamente a pensar nos outros, enquanto alguns, os do costume, lavam daí as suas mãos. Fomos tantos anos escravos de uma ditadura que criámos uma imunidade que nos agiganta e liberta em cada gesto.

Como diz o esloveno Slavoj Žižek: ”a propagação contínua da epidemia do coronavírus também desencadeou grandes epidemias de vírus ideológicos que estavam latentes nas nossas sociedades: notícias falsas, teorias de conspiração paranoicas, explosões de racismo…”.

É isso que temo. Acho que é só isso que temo.

Comparado com isso, o covid-19 é…um resfriadinho.

 

Alexandre Honrado

 


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