Crónica de Alice Vieira | Sejam criativos…

Alice Vieira

E agora sim, agora estamos obrigatoriamente de quarentena…E lá começam a surgir as anedotas, porque nunca vi como os portugueses para fazerem anedotas de tudo. (“As igrejas estão fechadas, só o Pôncio Pilatos é que pode sair, porque está sempre a lavar as mãos…..”  Aí vai uma para amostra.)

Claro que eu até gosto de estar em casa. Na minha infância complicada habituei-me muito a estar sozinha e a arranjar maneira de me entreter. Eu nunca me aborreço, é verdade.

Mas, como dizia a Melina Mercouri, gosto muito de estar sozinha, desde que eu saiba que há muita gente do outro lado da porta.

O que, evidentemente, não é agora o nosso caso.

Mas uma das coisas boas que esta quarentena tem (“à quelque chose malheur est bon”—para qualquer coisa a desgraça é boa”—diz um ditado francês) é realçar o lado criativo das pessoas. As pessoas fazem vídeos, descobrem músicas, os artistas põem as suas peças na net, etc…

No dia dos meus anos  recebo uma chamada. Número não identificado. Em tempos normais não atenderia, mas agora atendo todos. Do lado de lá um senhor diz-me que vem da parte da minha prima Luisa, de Castelo Branco, para me dar uma prenda.

Então o senhor é contador de histórias—e aceita encomendas. Quer dizer: as pessoas ligam para ele, dão-lhe o nome e o número de telefone de um amigo, ele liga para essa pessoa—e conta-lhe uma história.

Eu estava fascinada. Encostada no meu sofá, ia ouvindo aquela história maravilhosa de uma princesa, que se apaixonou por um criado, e de repente ficaram ambos sem coração. E os corações viajaram, por aqui e por ali…enfim, não conto mais, mas era realmente muito bonita (os dois corações acabaram por se encontrar, no fim de muitas peripécias…) e ele contava muito bem.

Fiquei-lhe muito grata a ele e à minha prima Luisa.

E a história podia acabar aqui.

Mas não acaba.

Porque, já nas nossas despedidas, o senhor disse que também escrevia poesia, mas quem tinha sido mesmo um grande poeta era o pai, que tinha morrido há uns anos.

“E como é que se chamava o seu pai?”, pergunto-lhe

“Corsino Fortes”

Eu até ia deixando cair o telemóvel, como o Conan Osíris.

“Corsino Fortes? De Cabo Verde?”

E ele : “esse mesmo.”

Foi então a minha vez de lhe contar uma história a ele : a história de Corsino Fortes, meu colega dos tempos da faculdade, e de quem eu gostava muito. Ele era mais velho do que eu, e tinha entrado tarde na faculdade porque tinha tido uma vida muito complicada em Cabo Verde. Contei-lhe histórias dele, contei-lhe que a última vez que tinha estado com ele tinha sido numas “Correntes de Escrita”, na Póvoa, onde ele era um dos poetas convidados. “Olha a minha coleguinha”, ouvi atrás de mim, virei-me e era ele. Foi um reencontro muito feliz.

E pronto. O filho ficou muito contente de saber isto, contou à família toda que cá vive. e todos me agradeceram muito, e eu ganhei uma data de amigos.

Realmente o mundo é muito pequeno. E não é que, neste tempo de quarentena, em que não vemos ninguém,  vamos fazendo mais amigos?…

Um dia hei-de falar mais aqui de Corsino Fortes, um grande poeta, um grande amigo.

Fiquem bem. E em casa, claro.

Alice Vieira

 

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Alice Vieira

Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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