Crónica de Alexandre Honrado – Não adianta comunicar

Alkexandre Honrado

NÃO ADIANTA COMUNICAR

A análise do que se passa à nossa volta é muito menos baseada no que, na realidade, se passa à nossa volta e muito mais na forma como se comunica o que, de modo mais ou menos amplo, se terá passado à nossa volta.
Vivemos assim nos complexos criados pela comunicação, comunicação e complexos que podem vir da imprensa que tenta criar uma opinião pública submetida à opinião publicada, mas também gerados pela comunicação empresarial, com a propaganda, a publicidade, a promoção no topo, e finalmente pela desenfreada comunicação interpessoal que nos põe em contacto uns com os outros e por vezes com a ilusão, a grande ilusão, de que comunicamos com toda a gente e que afinal é a tradução dos nossos silenciosos receios e das frustrações que nos impelem.
O enredo destes três tipos de comunicação – a social, a empresarial e a interpessoal – deixa-nos cativos do que julgamos ser informação, que é, as mais das vezes, desinformação, contrainformação e um deliberado conjunto de mentiras (hoje reunidas sob a designação genérica de notícias falsas ou, com mais estilo na designação, as fake news) que nos confundem, formatam, permitem novas crenças, todas muito distantes normalmente do que realmente há, se passou, ou aconteceu.
Podemos comunicar graças às expressões transmitidas e graças às expressões emitidas.
Todos transmitimos, nem todos recebemos, e, pior, nem todos percebemos o que recebemos. Mas a luta mais dura prende-se com a segunda vertente, que remete para as expressões emitidas (por um emissor, que podemos ser nós, a estação de rádio, o porta-voz do governo, o canal de televisão, o anúncio que nos impõe um comportamento ou um ato de consumo). Estas expressões emitidas são o lado “teatral” da comunicação – o falso parece real – e contextual – que gera contextos, que os eleva, amplifica, torna verdade por menos que o sejam. Acreditamos. assim que o treinador é que teve a culpa, e lá cede ele a cabeça pela equipa que não fez pela vitória. Cai a ponte e é o ministro de serviço que se demite e não os que antes dele permitiram retirar areia e cascalho dos seus pilares. O mar galga as margens onde a construção clandestina se ergueu, e há que demitir o presidente da junta, o da Câmara, o tipo das obras públicas, o primeiro-ministro, o presidente, mas que se safe o construtor. Alguém põe a correr que certa etnia vive de subsídios – e mesmo quando lhe é demonstrado que essa mesma etnia é a percentagem mais pequena dos beneficiários, já o crime sem castigo se tornou opinião nos cafés, nas esquinas, nos transportes públicos. Alguém espirra e aponta-se o chinês mais próximo. Muitos roubam e o único ladrão apanhado será culpado por todas as gatunagens.
A alguns interessa sempre veicular para os outros a imagem que deseja que os outros adquiram. E os outros adquirem, isso é definitivo. E não só adquirem como pedem sangue rápido e a cabeça do treinador da equipa acéfala, o exorcismo da bruxa que nunca enfeitiçou, a miséria do vizinho que parece exibir o carro que não pode comprar.
Sobem as frustrações ao palco. Constrói-se socialmente a realidade. Se houver suspeitas chama-se o jornalismo dos pregos e da coroa de espinhos, capaz de erguer a cruz e fazer de um inocente aquilo que mais lhe convier.
O perigo é que todas as sociedades fascistas, as mais musculadas (como alguns hipócritas as suavizam) reflete essa grande ilusão, esse denunciar os outros, esse arrastar das massas atrás das flautas dos encantamentos, onde o que é policiado se torna policial e o que é comunicação se torna – a qualquer nível – mordaça em cima de mordaça.

Alexandre Honrado

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