Crónica de Jorge C Ferreira | A vontade que não se cumpriu

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira

A vontade que não se cumpriu

A vontade que não se cumpriu. As espadas por terra. As areias que derrotaram uma vontade. Os gibões e as armaduras como ganho de batalha. Os prisioneiros, descalços, vestes rasgadas, hirsutos. Prisioneiros que iriam ser beatificados. As outras armas que desapareceram e apareceram num golpe de embriaguez. Os poderes de quem não pode. A vontade de complicar. Mais uma assinatura, mais um carimbo. O chefe do chefezinho. Um café na hora certa. O pedido e a volta do papel.

A espera pela consulta, que era urgente. A dor que não passa. A senhazinha para tudo. Um número. O malvado do número. Os números malvados que têm gente por trás. A vida a desandar. O passar de culpas. Poucos são os que assumem um erro. Todos fizeram tudo bem. O azar é que lixa tudo. O utente, é assim que chamam ao doente, continua sem vislumbrar o dia da marcação da tal consulta. Um dia será. Será que vem a tempo?

Houve um dia em que um ditador, de botas e manta sobre os joelhos, disse: “Para Angola! Já e em Força.” Foram buscar às aldeias os jovens que nunca tinham visto o mar. Ensinaram-nos a manejar uma arma. Embarcaram-nos nos porões dos barcos e enviaram-nos mar fora para terras desconhecidas. Deixaram os xailes negros a dizer adeus no cais. As noivas que nunca chegaram a casar. As Mães que morriam de desgosto. Nos porões dos barcos o vomitado juntava-se com as lágrimas. Quando chegassem à cidade do outro continente, tinham de estar impecáveis, a barba bem escanhoada, as botas engraxadas, a arma a brilhar. O desfile era importante.

Tudo porque havia um louco que dizia: “Portugal é um País onde o sol nunca se põe.” O mato. As emboscadas. As minas. Os corpos decepados. Outra vez a mesma história. O mesmo Continente. Outro lugar e outras armas.

Entretanto apareceu algo que mudou tudo. Acabaram-se as guerras. Apareceram flores e gritaram-se palavras de ordem. A coisa começou a andar, mas apareceram os do costume a dizer que a coisa estava a andar muito depressa. Os do costume com os aliados do costume, trataram de acabar com as veleidades dos que sonhavam ir mais além.

A coisa foi andando e desandando e a consulta do utente número não sei quantos continua por marcar. O que está a dar é ter um seguro de saúde. Ouve-se amiudadas vezes. Mas quando a coisa é séria é no SNS que as coisas são tratadas.

Quando as coisas ficam a meio caminho, ficamos todos a meio caminho. Não vou dizer aqui tudo a que temos direito e nos falta. Vou apenas dizer que somos um povo pouco exigente. Acomodado. Por vezes e em certas camadas muito invejoso. Habituaram-nos a ter para nos desviarem de Ser. Estamos sempre a tempo de mudar o rumo das coisas. Já é tempo do utente nº tal passar a ser tratado como doente e ver a sua consulta marcada em tempo útil.

«Olha, tens toda a razão. Há quem seja chamado para a consulta depois de morrer.»

Fala de Isaurinda.

«Eu sei, mas devemos defender o SNS. Mal dos mais desfavorecidos se ele entrar em falência.»

Respondo.

«Eu sei e estarei contigo até ao fim nessa caminhada. Mas olha que os comilões andam por aí.»

De novo Isaurinda e vai, na mão um V de vitória.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2020(240)

 


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10 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A vontade que não se cumpriu”

  1. António Feliciano de Oliveira Pereira

    E continuarão sempre a andar por aí observando os descuidados de boa-fé que somos. O que desperdiçam por incúria outros aproveitam com mestria. Nunca deixaremos de ser um povo pobre mas honrado, quando a honra vem do berço.
    O homem do capote não foi exemplo para ninguém, a não ser para aqueles que lhe lambiam as botas e lhe sopravam aos ouvidos o que não tinham visto para mais um degrau na carreira. Negligenciavam os despachos quando soavam alguns alarmes na procura de um papel importante. Ainda hoje é assim. Protelar, protelar, protelar!!!!!!!!!!!!!!!!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Que bom ler o seu comentário. A palavra de honra está um pouco em desuso. Vamos ser nós. Grande abraço

  2. Maria Antónia Anacleto

    Gostei tanto de te ler Jorge. Excelente crónica. Abraço-te.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Antónia. Que bom que gostaste. Abraço

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente crónica! Acompanharei também esta caminhada. O SNS, longe de ser perfeito, foi uma conquista após o 25 de Abril, que não podemos permitir ser posto em causa. Não podemos permitir que a burocracia, o jogo de interesses, o não querer de quem pode, levem à ruptura do Serviço Público, ao qual todos tenham acesso.
    Pessoalmente estou grata ao SNS ao qual recorro regularmente. Admiro a dedicação de alguns profissionais de saúde que trabalham em condições inaceitáveis.
    Obrigada Jorge, pelo grito de alerta, que nos chega através dos seus textos.
    Um abraço amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Defender o SNS, sempre. Abraço

  4. Ivone Teles

    Belíssima crónica. Quantos anos andei para trás. Trabalhei num Hospital, já então de referência, desde 1964 .. Um Hospital Universitário, instalado já há muitos anos num histórico edifício. Modestas Instalações, muitas falhas de muita coisa, mas com trabalhadores de várias profissões a ” darem a camisola” pelo seu funcionamento. Tempos da ” outra senhora “. Num dia de CRAVOS cresceu uma Esperança de Democracia. Um Ministro da Saúde, juntou aspirações, criou Leis e condições e nasceu o SNS. Mudou muita coisa e, mais tarde até um Edifício Novo e novas condições de trabalho. E, sempre tentando melhorar,foi crescendo no país, a nível de Cuidados Primários e Hospitalares um novo rumo. Mas logo a iniciativa privada foi minando o que estava a melhorar e, aos poucos, ajudada por governos que a apoiavam, foram tentando matar o SNS que, efectivamente, adoeceu. Mas não morreu. O SNS existe e está na mão de todos os que o amam lutarem por ele e darem novamente VIDA ao “Cumprimento de uma Vontade “. Lutemos, pois, Queremos um SNS para TODOS. Um SNS em que ricos e pobres tenham o mesmo tratamento. Que tenham nomes, em vezes de números e não morram por falta de cuidados médicos e humanos. Subscrevo a tua crónica Jorge, meu amigo/ irmão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Agradeço, tanto, a tua dedicação ao SNS. Sei como és. Sei como o continuas a defender. Abraço enorme

  5. Regina Conde

    Quando não existia SNS. Um ditador. O dia que nasceu de cor nunca visto. Algo melhorou, como dizes os comilões estão atentos e “A vontade não se cumpriu”. Os números das senhas, que afinal não era aquela. Seria terrível o SNS ir à falência. As tentativas de vendas constantes de Seguros. O negócio vai vem. Defendo e irei defender o SNS até poder ver onde me tratam com a maior dignidade e profissionalismo. Excelente crónica. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Sabes que estarei sempre contigo nessa defesa. Um abraço grande

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