Crónica de Jorge C Ferreira | Uma casa na floresta

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira

Uma casa na floresta

Há alguém maior que a vida que vive numa dimensão difícil de atingir. Uma dimensão em que acontece o mistério de nos sublimarmos. Há uma amarga doçura que embala os sentidos, que embala o viver e a comunicação com os outros. É, mais ou menos, como estarmos sós numa floresta e sermos visitados por lobos que nos lambem em tons de azul. Ganhando assim anticorpos contra a malvadez. Uma floresta vestida de magia. Um embaraço de caminhos.  Uma árvore mãe onde acontecem todos os feitiços. Uma loba a parir.

Continuar a vida apesar dos sinais imensos de destruição. As armas e as doenças. A súbita manifestação de um perigo desconhecido. As batalhas cada vez mais difíceis de vencer. Os muros que outrora derrubados se querem levantar de novo. Um corpo que não se atinge. O sonho imenso de conseguir tocar o impossível. O peso da terra. As velas acesas e alguns estranhos cheiros e sabores. Coisas únicas e nunca divulgadas. Algo como receitas guardadas em cofres fortes. Um corpo que se move, aparece e desaparece. Esse corpo que queremos tocar, beijar, amar. A volúpia do amor.

Chegar à conversa com estas pessoas, ganhar a sua confiança, tentar chegar ao patamar onde vivem e pensam. Atingir a sua infinita dimensão. Tentar compreender todas as palavras, mesmo as escritas nas árvores e as subentendidas no chão que pisamos. As fogueiras das feiticeiras, o aspergir tudo com líquidos especiais, as bebidas de calar segredos e uma dança eterna numa noite de lua cheia. A fogueira que se apaga pela manhã num sinal especial de tempo e desordem. Da casa de madeira sai uma luz especial.

Uma luz cheia de palavras sonhadas. Porque o sonho é o dono de tudo naqueles recintos a sugerir o sagrado que existe no profano. Imagens que desaparecem nas linhas de um poema. Verso a verso aquela bruxuleante luz se vai definindo. É firme a mão que escreve tais maravilhas. A erótica maneira de percorrer um corpo. De o beijar palmo a palmo. A entrega e o desejo. A desordem a crescer na cabeça de quem recebe estas mensagens. Uma vontade enorme de infringir todas as regras. O amor que todas as mãos procuram.

Há quem diga que a Senhora, da casa de madeira escondida na floresta, recebe visitas de Serafins, Querubins, Arcanjos e Anjos de todas as hierarquias. Que com estes mantém conversas demoradas em línguas estranhas. Que se soltam estrelas que se vêem sair pela chaminé daquela casa encantada. Encantos que se espalham pelos que têm a sorte de beijar ou abraçar a especial criatura. Sabe-se que quando tais encontros acontecem os lobos fazem guarda à casa e nem um uivo se ouve. Há paz na floresta.

Os livros que são guias para saber amar. Os livros que abalam o que é tido como correcto. Os livros para gente despenteada. Os livros para quem gosta da vida sem limites e do amor sem restrições. Os livros dos que sempre odiaram as polícias de costumes e as leis castradoras. Os livros que nascem e vivem naquela casa. Quando os raios de sol penetram na floresta, é um campo de liberdade que encontram. Flores silvestres que cantam odes a deusas antigas e lobos com o tal lamber azul. Sempre um verso perdido escrito numa árvore. A Floresta da Poesia.

«Olha que tu, de vez em quando, vens com cada uma! Sabes que eu não gosto muito destas conversas.»

Fala de Isaurinda.

«Eu gostei tanto de escrever isto! É um mundo bonito.»

Respondo.

«Bonito, para ti. Gostava de te ver a viver ali!»

De novo Isaurinda e vai, uma gargalhada na mão.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2020(238)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

Leia também

18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Uma casa na floresta”

  1. Maria Antónia Anacleto

    Foi tão bom ler-te meu grande amigo. Abraço.

  2. Cecília Vicente

    Que texto meu querido amigo escrevinhador,se as palavras fazem caminho,o escritor é o porta voz da alma que nos ilumina o nosso recanto onde a sensibilidade é o nosso elo de ligação. Bem haja pelas palavras que enchem o meu coração de palavras que me confortam. Aquele abraço meu amigo,meu amigo das palavras

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Tão bom o que escreveu. Sabe bem. Abraço enorme

  3. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Quantos mistérios as florestas guardam; também as florestas dos livros nas estantes das bibliotecas.
    Ao lê-los descobrimos que na nossa mente há algo novo para revelar, como se fosse uma nova leitura de um mesmo livro.
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. As florestas têm magia dentro. Há livros e Poemas azul. Um grande abraço.

  4. Branca Maria Ruas

    Uma Floresta da Poesia.
    Uma casa encantada.
    A Luz e as palavras sonhadas.
    A fantasia.
    A melhor maneira de viver a vida é vivê-la poeticamente (já o diz Edgar Morin).
    Só assim se suporta o mundo que vive fora deste encanto.

    1. Ana Nogueira

      Sem palavras!Maravilha!Ler e reler!Amei as always

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Ana. Que bom ver-te aqui. Abraço

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. A Poesia é a chave da vida. A floresta encanta os poemas, que encantam a floresta. Um círculo de beleza. Abraço

    3. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. As florestas e os poemas. Os nossos sonhos e o fogo. Abraço

  5. maria fernanda morais aires gonçalves

    São locais sagrados habitados por feiticeiras, há até quem lhes chame anjos, outros Dizem que são bruxas, têm poderes, umas escrevem, outras pintam, outras tocam harpas e violinos em noites de lua cheia e há quem diga que nem os lobisomens se aventuram a chegar perto das suas cabanas. Logo pela manhã levantam-se e cobrem o corpo de vestes brancas dirigem-se à fonte de água mais próxima e juntam-se em rituais de purificação. Lavam as mãos e o rosto, escovam os cabelos e dão as mãos. Murmuram palavras que só elas sabem, códigos que lhes foram transmitidos por entidades desconhecidas.
    São eternas, não constam que alguma vez alguma delas tenha desaparecido.Há também quem lhes chame ARTES.
    Será que têm alguma coisa a ver com o teu fantástico texto?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Grato por te ver aqui. Que belo o teu comentário, mais uma vez obrigado. Abraço

  6. Ivone Teles

    Uma casa numa floresta, mas nem casa nem floresta são umas quaisquer. Criaste, com a tua habitual magia, uma casa bela numa floresta que só poderia ser mágica também. Há gentes que lá se encontram e trocam amores, segredos e comunhões de vida. Porque se entregam ao que têm de mais puro. São belas as palavras que trocam, são belos os corpos que afagam, são belos os sentimentos que exprimem. É entre canções de lindos poemas e melodias concebidas por fadas e querubins que dançam, e se elevam, como pássaros cujas asas emitem luzes estreladas de outros sois interiores.
    Diz à Isaurinda que lá , nesse ” mundo bonito “, ( palavras tuas) serias feliz e ela te encontraria, sempre, entre risos e momentos felizes.
    Beijinhos amigos e ternos, meu Amigo/ Irmão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Belo o teu texto como sempre. Que mundo! Grato por tudo. Abraço.

  7. Cristina Ferreira

    Uma crónica repleta de Luz e magia.
    Uma tela gigante de aromas perfumados de encanto. Sabores e sentires únicos. Voei com
    fadas e feiticeiras. Abraçada nas tuas palavras, confundi-me com estes seres.
    A compreensão do artista. A arte em todo o seu esplendor.
    Obrigada, meu querido mago das palavras.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Que feliz estou por teres sentido tudo isso. Que bom teres dito. Abraço

  8. Sara Paiva

    Lindíssimo!
    Obrigada.
    Beijinhos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sara. Que felicidade estares aqui. Grande abraço

Comments are closed.