Crónica de Alice Vieira | Sonhar dá muito trabalho

Alice Vieira

Há uns bons anos (mas não muitos, apesar de tudo…) uma escola de Timor recebeu uma prenda: um quadro preto.

Um quadro preto, banalíssimo, daqueles para os quais, nesta era da tecnologia acelerada, os alunos olham quase com desdém. E muitos haverá que nem sequer sabem para que é que aquilo serve.

Uma prenda que certamente ninguém se lembraria de oferecer hoje a nenhuma escola do nosso país. Se o fizesse, cairia o carmo e a trindade, seria decerto motivo de primeira página dos jornais, abriria telejornais, os pais protestariam à porta das escolas, e o ministério haveria certamente de proceder a averiguações para descobrir o autor de uma graça de tão mau gosto.

Mas o dia da chegada do quadro preto àquela escola de Timor foi uma festa.

Ao fim destes anos todos, ainda me lembro do sorriso do professor , como se um milagre tivesse acontecido naquele fim do mundo.

As crianças riam, porque olhavam para aquele objecto e tinham a certeza de que, a partir daquele momento, aprender ia ser mais fácil. E aprender era tudo o que elas queriam. Nunca vi ninguém com mais vontade de aprender do que as crianças de Timor.

Lembro-me de ter perguntado ao professor, naquele espanto dos que têm tudo:

–Então até agora como é que ensinava, como é que escrevia?

Ele olhou-me, naquele espanto dos que não têm nada:

— Então, como é que havia de ser? Escrevia no chão, na terra. Com um pau…O que houvesse…

Vem-me sempre isto à cabeça  quando oiço crianças, jovens e adultos a protestar contra a falta de condições que existe nalgumas escolas, contra a falta de material, contra a escassez de computadores, etc, etc, etc.

Claro que eu também não gosto—ninguém gosta…– de escolas mal equipadas, sobretudo quando vemos ser utilizado em projectos só de fachada o dinheiro que poderia ser utilizado para melhorar o ensino e a cultura.

Claro que eu não advogo o regresso ao antigamente, senão ainda agora estaríamos todos a escrever com penas de pato e à luz da vela—o que não dava jeito nenhum.

É claro que as novas tecnologias nos abrem horizontes até há pouco inimagináveis, e TODOS deveriam ter igual acesso a elas.

Mas se, por qualquer motivo, alguma destas coisas falha—também não é o fim do mundo.

Acreditem que mesmo sem computadores, mesmo com escolas superlotadas e longe do lugar onde vivemos—consegue-se trabalhar.

Desde que se queira.

Desde que se tenha vontade de aprender.

Há uns anos participei num congresso de literatura na Póvoa de Varzim, com cerca de uma centena de escritores portugueses, africanos e da América Latina.

Vários colóquios todos os dias, em que cada um contava a sua experiência de vida.

E uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi a quantidade de escritores (importantes, premiadíssimos, traduzidos no mundo inteiro) que começavam por dizer:

–Em minha casa não havia livros. Em minha casa não havia dinheiro para lápis. Em minha casa não havia dinheiro para  cadernos.

Ou então:

— Tinha de caminhar uma data de quilómetros ao frio e à chuva para ir à escola.

A escritora moçambicana Paulina Chiziane disse mesmo:

–Na minha família, eu era a única que sabia ler.

E isso não os impediu de terem chegado onde chegaram.

Hans Christian Andersen– tão importante que a data do seu nascimento foi escolhida para nela se celebrar o Dia Mundial do Livro Infantil – teve uma infância miserável. Pais e irmãos viviam todos num só quarto e, aos 14 anos, já ele estava longe de casa a trabalhar para sustentar a família (tendo começado os estudos muito tarde)

Madame Curie—que recebeu o Prémio Nobel por duas vezes!—contava que o quarto minúsculo onde vivia quando estudava era tão gelado, que ela se enfiava na cama para ter um pouco menos de frio e, mesmo assim,  tinha de colocar a cadeira em cima dela para ficar um pouco mais quente e se poder concentrar no que lia.

E tantos, tantos outros casos poderia agora citar…

Mas, se tudo lhes faltou, a todos sobrou vontade de vencer,de fazer qualquer coisa que os preenchesse, de perseguir um sonho.

O meu receio é que os nossos jovens, hoje– formatados para uma sociedade que lhes diz que nada dá trabalho, que tudo é muito simples e leve e rápido e lúdico—andem a sonhar muito pouco.

 


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