Crónica de Jorge C Ferreira | Teatro Nacional

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira

Teatro Nacional

Rossio, Lisboa, nove horas da manhã. Tão cedo para mim! Uma obrigação inadiável me levou até aqui. Já há turistas com guias a passear a manhã pela baixa. Está montada a iluminação de Natal para mais logo se acender. No Teatro Nacional, não reparei que peça estava em cena. Reparei num enorme cartaz que gritava: “A Arte Faz A Diferença”, nos anúncios de visitas guiadas, na livraria e pouco mais. Toda a minha atenção se virou para o acampamento dos sem abrigo.

Cobertores, dos que se levantam mais cedo, a apanhar ar nos muros. Outros ainda dormem. O cartão e os cobertores, um cenário de uma peça por representar. Um homem apertava o cinto mais um furo. Tinha acabado de se levantar para mais um acto diário da sua vida. Tinha um barrete e várias camadas de roupa. Outro homem, um pouco mais novo, descansava a cabeça entre as mãos. Parecia a estátua do pensador. Estava sentado. Que contas faria à vida? Que interrogaria a si próprio?

Tanta conversa solitária. As frieiras e as unhas a crescerem negras. As dores que a humidade nocturna chama. A vida a passar do outro lado e eles, invisíveis, como se tivessem baixado a cortina do teatro. Não há palmas nem vindas à boca de cena. É uma peça que está em cena há muitos anos. Tudo isto nas arcadas do Teatro Nacional. De frente para o Rossio onde estão a construir hotéis de luxo. Logo, depois de se acenderem as luzes de Natal, chegarão umas carrinhas para oferecer uma sopinha quente e algo mais. Depois será uma nova noite até que as luzes se apaguem.

Os turistas lá vão andando. Mais tarde irão subir a Avenida e ver as lojas de luxo. Poucos destes turistas compram algo ali. Também naquela Avenida, com lojas de grife, dormem mais sem abrigo. As passagens de modelo terão de mudar de lugar. Os turistas lá vão guiados por alguém com uma bandeirinha na ponta de uma haste de metal enorme. Espero que ninguém se perca. Já que é sobre perdição que estamos a falar.

Continuemos com o homem que tentava apertar o cinto à vista de toda a gente. Estava virado para a estátua de D. Pedro IV e continua a sua labuta. O Rei nem um esgar esboçou perante tal esforço. Parecia estar longe do local. Parecia estar noutro Continente e ser D Pedro I do Brasil.

Para história já chega. É outra a história que me levou a escrever este texto. A história da dificuldade de acabar com os sem abrigo. A história de ir ver as luzes de Natal e olhar para o lado. A história da eterna caridadezinha. A história do faz de conta que sou bonzinho.

Logo vão acender outra vez todas as luzes. O resto vai continuar na mesma. Será que hoje algum sem abrigo vai arranjar um tecto? Quando acaba este cenário às portas do Teatro Nacional? Quantos teatros destes espalhados pela cidade! Tanto tecto sem gente e tanta gente sem tecto. Apaguem as luzes.

«Tens tanta razão. O que me custa ver tanta gente assim.»

Voz de Isaurinda.

«Eu sei, tu és boa gente. Sempre foste mais de trabalho que de festas.»

Respondo.

«Não me conformo. Sinto uma revolta!»

De novo Isaurinda e vai, a mão a limpar uma lágrima rebelde.

Jorge C Ferreira Dezembro/2019(230)

 


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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Teatro Nacional”

  1. Adolfo Henrique Quaresma Branco

    Lá vem a carinha com a sopinha, os voluntários tao gentis sao, depois irao receber a comunhar……as vezes, lá temos o homem dos afectos dando abraços…………..Vamos ter a ” peça”, em cena , anos …..Fico doente só em pensar em tal .
    Um abraço Jorge Ferreira

  2. António Feliciano de Oliveira Pereira

    É um cenário repetido vezes sem conta. A mesma cena com actores representando as suas vicissitudes.
    São textos de histórias dramáticas nos rostos de cada figurante. É a vida representada por gestos, muitas vezes com sangue, suor e lágrimas.
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado. António. Um terrível cenário. Custa continuar a assistir. Um sofrimento também para si.

      1. Jorge C Ferreira

        Também para mim. (DESCULPE). Abraço.

  3. Madalena

    É um mundo cão! Muito triste, de facto. Obrigada pelo texto tão pertinente. Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Sim, um mundo que temos de mudar. Abraço.

  4. Eulália Pereira Coutinho

    É revoltante sim! É angustiante saber que tantos não têm direito a habitação. É muito triste ver que tantos só no Natal, têm direito ao brilho das luzes.
    Que mundo este. Pior que tudo é pensar que muitos dos sem abrigo são abandonados pela família.
    Até quando?
    Obrigada amigo por este grito de alerta!
    Feliz Natal. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Enquanto puder não calarei. Um mundo melhor é necessário, obrigatório. Abraço.

  5. Cristina Ferreira

    Absolutamente revoltante, não nos podemos conformar com este fenómeno que é os sem abrigo e a sua inerente dificuldade. Não se trata apenas de questões económicas , existem outros factores que levam as pessoas a cair na rua. Por isso, a responsabilidade também é nossa, da sociedade em geral. Não devemos ficar indiferentes a esta chaga viva onde o Estado não chega. Obrigada uma vez mais pelas tuas palavras. Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Devemos abominar esta situação e fazer, sempre, ouvir a nossa voz. Condenar a caridadezinha. Abraço

  6. Regina Conde

    Há uns meses atrás fui assistir a um espectáculo no Tivoli. Quando terminou fomos descendo até ao Teatro Nacional. Nunca vou esquecer os actores forçados. Têm uma vedeta que se senta e os abraça, com luzes fortes como convém no Teatro. Só nestes dias de Natal. Sinto-me uma pessoas tão pequena quando passo pela Avenida da Liberdade e vejo que cada vez mais cedo procuram salvaguardar o espaço e os pertences. Mais cartões são necessários para tapar a luz da decoração de Natal. Porque não mudam a legislação deste país. Tantas pessoas que olham para as mãos sem as verem. São os poetas a fazerem-se ouvir. É a tua crónica! Abraço Amigo Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. O custa é ver os que promovem à custa disto. Uma pantomina. Uma peça muito triste.

  7. Fernanda Luís

    Peça em cena desde há longos anos, inspirada no trágico.
    Tragédia, para além dos sucessivos natais.
    Vai continuar com mais e novos atores. Não tenhamos dúvidas.
    Vivemos numa sociedade global de exclusão. Verdade nua e crua.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Verdade. A exclusão é cada vez maior. Cada vez mais gente nas franjas de difícil viver. Abraço

  8. Cecília Vicente

    Todos os dias,é diário,quem sai do comboio vindo de Cascais e para em Alcântara para entrar no túnel que dá acesso a apanhar outro comboio é mais do mesmo. É alarmante,inúmeras camas de cartão,o cheiro nauseabundo é deveras anti social,é para muitos um virar de cara,não é com eles,nada os incomoda,há até quem diga em voz alta,malditos,deviam é trabalhar… no regresso,apenas as camas feitas à espera do corpo.Um ou outro apenas pede qualquer coisa,nem que seja um pacote de leite,muitos são jovens e educados,dá para os conhecer e cumprimentar com um simples boa tarde,estás bem? respondem quase sempre,estamos dentro do habitual. O pacote de leite tornou-se diário.Podia ser mais,não querem porque à noite há um caldo quente,depois logo se vê… Até amanhã,ouço sempre quando subo os degraus para regressar onde à noite tento dormir com o agasalho que o coração consente. Obrigada,meu amigo,tens o coração grande,gosto disso. Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Sabes ver e vês. É horrível. Temos de saber ver tudo o que gira à volta deste fenómeno. Abraço

  9. Isabel Pires

    Como os “homens” passam indiferentes a esta gente sem chão nem tecto. As luzes tb brilham sem os ver. Mais um Natal sim, logo vem a caridadezinha para aquecer. Aquecer a noite? As noites! Bom Natal🌲

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Tem toda a razão. Um sintético e excelente comentário. Abraço

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