Crónica de Jorge C Ferreira | Falar de Poesia

CRÓNICA DE 4
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Crónica de Jorge C Ferreira | Falar de Poesia

 

Falar de Poesia

Três versos bordados na fralda de uma camisa. Um pequeno, mas intenso poema. Os versos a quererem aquecer a vida. Um poema encantado pelo corpo em que vai crescendo. Letra a letra renasce a voz da poetisa. Uma voz funda vinda de tempos amados. Uma voz herdada das canções de amigo.

Canta-se o amor e batem os corações. Porque a voz dos poetas é a voz da poesia. Há um músico que ama compor para os poemas por fazer. Há um poeta que lhe faz a vontade e lhe enche a música de palavras. Há um par de namorados que faz tudo aquilo seu, até se embebedar de amor numa cama desconhecida.

O poema de um autor desconhecido é encontrado no bolso de uma gabardine esquecida num café. Ninguém conhece o dono da gabardine. É um poema triste. Será um poema de despedida? Será o poema final? No café é conversa diária. Quando entra alguém desconhecido, todos olham à uma. Será o poeta desconhecido, será o dono da gabardine? Esta coisa da poesia não ter horários.

Uma poetisa de muitas echarpes e cabelo muito curto, escreve sem mostrar a ninguém a história da sua vida num poema sem fim. Todos os dias mais um capítulo. Mais um caso verdadeiro e três inventados. Uma pasta cheia de folhas escritas a tinta turquesa. Toda a gente ávida para ler tal obra. Ela diz de forma tonitruante:

«A ser obra será póstuma.»

Tudo se cala. Um silêncio que cansa. Parece que ninguém respira. Respira-se apenas a poesia acumulada. A vida suspensa. A obra calada.

Das cantigas de amigo que o já falado corpo vai acumulando, já ninguém fala. Muitos estão ansiosos pelas cantigas de escárnio e maldizer. Falam da nossa fama imensa de maldizer. Pensam que é aí que está o nosso registo. Outros discordam dizem que somos uns pinga-amor. Que é o amor a nossa forte fraqueza. Vamos escrever poemas de amor. Vamos amar enquanto os jardins tiverem flores.

Chega um homem em busca da gabardine perdida. Dezenas de olhos se viram para ele. Um, mais afoito, pergunta:

«O poema?»

«Qual poema?»

Pergunta o homem da gabardine.

«O que estava no bolso da gabardine.»

Diz outro.

«Não sei nada disso. Não sou poeta. Sou contabilista.»

Afirma e mostra um cartão que o certifica.

Assim nasceu naquele café um novo mistério: O do poema num bolso de uma gabardine errada.

O homem foi embora com a gabardine. Ficou o poema espetado num placard da parede do café.

Assim nascia o poema sem autor. Assim se começaram a suceder os poemas anónimos naquele placard.

A poetisa continuava a escrever no seu canto. De vez em quando avisava:

«Quando eu morrer podem lá ir buscar a papelada a casa e publicar.»

Rápido se metia de novo na escrita. Tudo visto e revisto. A obra em progressão contínua. Várias pastas. Muita vida.

O poema escrito no corpo continuava o seu caminho.

O café dos poemas continuava sem fechar e a acumular poemas anónimos.

Assim se fala de poesia.

«Olha que história bonita escreveste. Um pouco doida. Mas isso…»

Fala de Isaurinda.

«Não fosse a loucura que nos habita e a vida seria uma tristeza.»

Respondo.

«Sim, sim. Mas não abuses.»

De novo Isaurinda e vai, as mãos livres.

Jorge C Ferreira Novembro/2019(225)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Falar de Poesia”

  1. Maria Madalena

    A poetisa das muitas encharpes, o homem da gabardine que é contabilista e o poeta anónimo que distraído enviou o poema no bolso errado. Agora está pendurado junto a outros poemas anónimos. A poetisa das muitas encharpes e cabelo curto diz que a sua obra será póstuma e que a podem pendurar junto aos outros poemas anónimos. Um par de namorados ouve os poemas e pratica depois…Viva a poesia e o amor! Tudo isto se passa num café e deliciou-nos ainda mais o paladar do café. Parabéns Jorge! Este texto é de mestre! Uma flor para si. Beijinhos

    1. Maria Madalena

      Corrigindo – Deve ler-se enfiou e não enviou.

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. A poesia, os poetas, a poesia achada e perdida. Muita coisa à volta de um poema. Abraço

    3. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Vê abaixo a resposta. Abraço

  2. Cristina Ferreira

    Uma crónica que me emociona. Escrevendo, ou falando de poesia, Jorge, querido amigo, tens o Dom de nos tocar. Prendes-nos à tua escrita, como Villaret nos prendia ao pequeno ecrã. Sabes porquê? Porque tu és a própria poesia. Abraço, meu querido poeta.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Que comparação! Só uma amiga tão generosa como tu a faria. Grato. Abraço.

  3. Regina

    Texto de beleza, sentimentos e emoções. Expresso no ambiente em que as personagens se movimentam. Acredita que se sente a música envolvente. É poesia a arte com que escreves. Tenho para mim que a Isaurinda, o momento da razão diz: por hoje ficamos assim. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Que bom teres descoberto a música! Sabes, há escritores que eu leio como se fosse uma melodia que entrasse em mim. Que grato te fico com este comentário. Abraço.

  4. Cecília Vicente

    Meu amigo,tanta poesia em tudo o que escreves,até nas palavras doridas amenizas a dor com alguma nuance poética como que para afastar do poema ou prosa o que pode fazer da dor lágrimas sentidas.
    Comoveu-me este texto,nele,sem eu querer alcançar a poesia,vejo-me com um livro de poesia no regaço…
    Obrigada,sempre meu amigo.Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Todos devíamos ter um livro de Poesia no regaço. Um poema pode mudar uma vida. Vamos Poetar. Abraço

  5. António Feliciano Pereira

    Poesias, poetas, compositores de versos (as palavras que rimam) e que fazem sentido como se fossem escritas em prosa.
    É belo o poema quando tem a verdade do autor que muitas vezes nem sabe escrever.
    E aquele que poetisa sem versar a rima e declama, improvisando, o que em sua alma está escrito: a sua desditosa vida!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Belo o seu comentário. Encontrar a voz da Poesia. Amar os Poetas. Abraço

  6. Teles Ivone Teles

    Meu querido Jorge, belas as tuas palavras, quase sempre poéticas. Tu escreves poesia quase sempre. Numa estória, num pensamento, num texto. Nós recebemos em tudo a tua poesia. Atrevo-me a dizer meu querido Amigo/ Irmão, tu mesmo és um Poeta das palavras belas, cheias de sentires. E porque dizes ” que há poemas escritos no corpo”, és um poema da humanidade. Beijinhos grandes <3 <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Os teus comentários são sempre, uma alegria para quem lê o que escreves. Para mim então são uma festa imensa. És a minha Amiga/Irmã. Abraço

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