Crónica de Jorge C Ferreira | De Volta

CRÓNICA DE 4
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De Volta

Estou de volta. Regresso a este espaço com alegria. Tinha saudades vossas. Somos poços de saudades. Somos a verdade deste Sul. Somos um vai e vem. Somos seres em permanente movimento.

Já não ando em loucas correrias. É com uma demorada calma que me desloco. Passo a passo lá vou. Os olhos bem abertos para tentar abarcar tudo o que nos rodeia. Levo, quase sempre, muitas saudades de chegar e outras tantas de partir.

Parti com calma e com calma cheguei. Novelos levei, novelos trouxe. Baraços de emoções. Os fios que entrançam as amizades. Os fios com que se constroem ligações eternas.

Gosto de tranças. Gosto de as fazer. Gosto de ficar preso nelas. Gosto de as cuidar.

Uma vez, era ainda muito novo, escrevi:

“A Amizade

É uma trança que nos abraça…”

Coisas que se escrevem e nunca mais esquecemos. Sinais gravados num local especial da memória. Imagens paradas no tempo.

Levei agulhas de “tricot” para fazer peças de carinho e com elas vestir corpos de doçura.

Levei malas cheias de ternura para dar e tudo reparti. Trouxe, de volta, cabazes de beijos e abraços, muitas luas de encantar, alguns cantos de sereia, muita conversa de marinheiros.

Tomei o meu banho da meia-noite, na noite de S. João. Fiz as minhas oferendas, flores e algumas moedas, ao Mare Nostrum.

Tudo o que transporto cabe numa pequena mala que uso perto do coração. Uma mala que palpita de desejos.

Ouvi notícias que me marcaram e li outras que me deixaram pensativo.

Pensei, li, escrevi e falei. Falei com gente que gosta de falar, gente que não gosta de calar. Assim é a sincera gente.

Assisti a outra vida. Uma vida falada noutra língua. A mesma moeda, as mesmas contas. A casa alugada. Uma outra rua. Outras árvores. Outras lojas. Um caminho para o mar. A África do outro lado. As nuvens de areia que o deserto nos envia. As ondas de calor.

Comi batatas à pobre. Bebi a água que nos dão. Vi os corpos com sal a descansarem do calor. As salgadas tatuagens.

Nas notícias que li e ouvi deixaram-me um pouco perplexo algumas sobre a igreja.

Num documentário sobre ordens religiosas. Da sua maneira de sobreviver, de cuidar e restaurar o património a seu cargo. Vi os divinais doces que as freiras fazem e vendem. Vi prendados lavores. Ouvi, também, as suas queixas. Uma delas deixou-me boquiaberto. Uma das receitas que tinham, para o convento, era a feitura e venda de hóstias. Sucedeu que a China inundou o mercado com hóstias a preços imbatíveis e lá se foi o negócio das Irmãs.

Outra notícia que me deixou com ar esquisito:

Um conhecido banco implementou em várias igrejas caixas de esmolas electrónicas. Agora a esmola é dada através do cartão bancário, de débito ou crédito, e vai direitinha para a conta da paróquia.

O que se seguirá?

A entrada da igreja na bolsa?

A missa dada por robots devido à falta de vocações?

Vou estar atento.

«Estava a ver que era desta que ficavas na outra rua! Olha que não gosto nada desta parte final. Tu sabes.»

Voz de Isaurinda.

«Estavas com saudades. Que bom! A parte final não tem nada de mal e parte de notícias verdadeiras.»

Respondo.

«Sim, está bem! Sabes que te conheço muito bem.»

De novo Isaurinda e vai, as mãos ainda marcadas de saudades.

Jorge C Ferreira Julho/2019(207)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | De Volta”

  1. Célia M Cavaco

    Que bom é saber-te de volta meu amigo.Contigo regressam as palavras e as viagens e sonhos escrevinhadas.
    Que bom,que agradável regresso.Obrigada!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Que bom ter-te neste nosso espaço. Que alegria. Aparece sempre. Abraço

  2. maria fernanda da cunha morais aires gonçalves

    Tão bom saber de ti!
    És único e vives a tua vida num ciclo que implantaste e que nos habituaste às tuas rotinas. Vamos contigo ao café, bebemos a tua água com a rodela de limão, o cafezinho, observamos quem passa, dormimos a sesta, chega o mês de Maio lá vamos nós contigo de mala na mão no aviãozinho , etc. De vez em quando lá vamos nós num cruzeiro sem destino, muitas vezes só no teu coração e a imaginar, por ando eu agora? mas quando regressas a casa é uma festa.Prosa poética e poemas para todos com abundância e renovaste te sempre, nunca vens igual. Abraço. Parabéns ! Ato um laço na tua trança da amizade. Fernanda

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda, amiga do início do tempo. Sabes os meus hábitos. As minhas manias. Tudo lido em textos e crónicas que vou inventando. Temos de nos reinventar a cada passo. Abraço

  3. Jorge C Ferreira

    Obrigado Idalina. É um privilégio ter mais que uma rua de sonhos. Tão gostoso o seu comentário.

  4. Idalina Pereira

    Saudades deste lado também.
    Chegou com calma. Devagar, devagarinho, digo eu, à moda do meu Alentejo.
    Regressou, Jorge, com um texto de afetos, de ternura e atento ao Mundo.
    Obrigada, meu amigo, nesta ou noutra rua.

  5. Eulália Coutinho

    Que bom este regresso. Sem pressas, passos mais calmos. Sempre atento ao mundo. Sempre atento ao sentir.
    Saudades também da Isaurinda sempre pronta a aconselhar.
    Um abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Temos de estar sempre atentos ao que nos rodeia. A pressa é inimiga do aprender. Abraço amigo

  6. Sofia Barros

    Regaços, baraços e outros termos que vai sendo raro encontrar.
    Uma viagem ao passado, às palavras usadas pela família na infância, mas também uma visita ao interior de quem sente e reflecte, de quem sabe que a vida é o bem que se faz.
    Beijos, amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Sofia. São essas as palavras que nos fazem viver e reinventar. É tudo tão terno, tão apetecível. Obrigado pelo teu comentário. Abraço muito amigo

  7. maria rosa matos

    Lindo!
    Um regaço de afectos.

    Um abraço, Jorge

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Rossa. Que bom ter sentido isso. Um baraço de abraços.

  8. Teles Ivone Teles

    Querido amigo, pedi uns minutos emprestados a quem chegou. Podia lá deixar de te procurar aqui. Não farei um texto nem longo, nem cuidado. Farei um texto do coração que também nem sempre bate certo e compassado. Que gosto encontrar- te aqui. És tu, a tua linguagem, os teus sonhos. Observas e crias. E não é isso o VIVER ? Há algo de novo em ti. Sinto-o, mas não sei explicar. Nem é preciso. É uma das melhores qualidades da amizade. Reencontrei-te aqui, talvez um Jorge muito sereno. Uma vida de afectos da mesma forma. Homem que vive sobre a amizade, o amor, a camaradagem, como se um chão fosse. Tranquilizas.
    Tenho de ir. Mas antes quero que digas à Isaurinda que és o amigo dos tantos amigos de sempre. Numa rua, ou noutra, és o nosso Jorge deste teu país. Beijinhos ternos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone, minha amiga/irmã. Tão bom sempre ler o que escreves. A alegria de sentir ss tuas palavras mais perto. Espero ser sempre assim. Abraço grande.

  9. Cristina Ferreira

    E regressaste com mais uma pérola toda ela banhada à chancela Jorge C Ferreira. Linda. Bem vindo, querido amigo. Saudades

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Regressei com prazer. Que bom teres gostado. Abraço muito amigo

  10. Madalena

    Bem-vindo! Que maravilhoso texto cheio de tanto afecto! Estamos ligados por laços de amizade sincera e isso faz-nos felizes! Gostei muito das novidades que nos trouxe. Um grande obrigada e um abraço enorme.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Regressei num voo de tranças. Numa miscelânea de saudades. Abraço amigo.

  11. Regina Conde

    A reciprocidade na amizade. As saudades são autênticas. Fazes ausências com regresso. Chegas sem pressa, observas com todo o cuidado como é natural em ti. embora mais sábio. Tão jovem e já sentias que a amizade é uma união que cria resistência e sim é uma trança linda que nos abraça. Volta sempre Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Tranças, novelos, linhas. Baraços de afectos. Ir e voltar na rota da saudade. Não sei onde ficarei um dia. Sabemos pouco de nós. Abraço enorme.

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