ENTREVISTA || Dinarte Machado – Organeiro responsável pela intervenção nos órgãos da Basílica de Mafra

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ENTREVISTA || Dinarte Machado – Organeiro responsável pela intervenção nos órgãos da Basílica de Mafra

 

Como é que começou e se desenvolveu a sua relação com os instrumentos musicais e com a sua reparação e construção?
Eu fui roqueiro durante a juventude, aos 14 anos atuava num grupo musical, tocávamos a música da época, aquela que fazia mover os bailaricos. Ao mesmo tempo, era organista da minha igreja, lá no Nordeste, na ilha de S. Miguel, nos Açores.

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Na igreja onde tocava, olhava para o alto e via um órgão de grandes dimensões, mas que estava absolutamente mudo. Sempre me fez impressão ter um belo instrumento daqueles, que não soava, não tocava. Várias vezes pedi ao prior que mandasse reparar o órgão, mas ele sempre recusou. Chegado um novo padre, arranjei um avalista, que por acaso era meu tio e uma pessoa com muito crédito, e o padre autorizou-me então a reparar o instrumento. Li muito sobre órgãos e comecei a afinar pianos, conheci então um senhor alemão que era afinador da fábrica Steinway, na Alemanha, e com ele adquiri muita informação.

Gosta muito daquilo que faz?
A profissão de organeiro é muito dolorosa. O artista não sabe gerir, não sabe quanto tempo uma obra vai exigir, e isto, foi algo que eu tive de aprender. Se não gostasse do que faço, já teria desistido há muito tempo.

 

Como é que carateriza o ambiente do setor da conservação e restauro em Portugal?
Péssimo em vários sentidos. Portugal perdeu o rumo desde que deixaram de existir, no ativo, como existiam, a Fundação Ricardo Espírito Santo e o Instituto José Figueiredo. Eram autênticas escolas, que tinham uma forma própria de interpretar o património e constituíam uma referência. Hoje, na área de conservação e restauro essas referências quase que se perderam por inteiro.

Hoje não se procura a pessoa que sabe, utiliza-se o concurso público, que é a coisa mais perigosa para a conservação e restauro. O processo dos concursos obriga a respeitar o respetivo procedimento e este representa tudo o que não vai ao encontro do que é a natureza da intervenção na própria peça. O próprio concurso público põe por terra a verdadeira conceção da conservação e restauro, mas atenção, o modelo de concurso que recuso é aquele que existe neste momento. Se o caderno de encargos fosse livre… compreendemos que o dinheiro não dá para tudo, mas por vezes, o objetivo parece ser afastar as pessoas que sabem da arte. O concurso público que repudio está representado por alguns dos seus aspetos Jurídico-administrativos, e não, naturalmente, a parte do concurso que se destina a avaliar as competências dos intervenientes.

JM2019.07.01 19h11m04s 013É importante ir à origem da peça e fazer depois uma intervenção que devia simplesmente destinar-se a prolongar a vida da peça que recebemos.

Por exemplo, neste concurso para restauro do órgão do Palácio Nacional de Queluz, eles constituíram uma comissão formada por organistas e pessoas ligadas à organologia, para darem a sua opinião. Quando nos perguntam quanto tempo durará a intervenção, a resposta terá de ser aproximada e não definitiva, sendo esta a expressão da seriedade de quem intervém em património, isto, porque no restauro, no fundo, quem manda é a própria peça.

O último concurso público que aceitei foi o do palácio de Queluz e o primeiro foi o do Mosteiro do Lorvão, e não pretendo aceitar outros. Até agora já restaurei 85 instrumentos, mas não aceitarei outro trabalho com este “degradé” de intervenção.

Mas vejamos, em que circunstâncias é que eu poderia rever esta posição? Quando o concurso público, nos seus patamares de avaliação der valor, em 90% à capacidade do interventor e à preocupação do restauro da peça em causa, aí ver-me-ão a participar em todos os concursos públicos nacionais. No entanto, enquanto 60% ou 70% se referir ao valor financeiro da obra, enquanto se der importância ao facto de os papeis estarem ou não, em dia, e a qualidade da intervenção no instrumento só merecer 20% de ponderação, então, não contem comigo.

Por outro lado, é importante saber quem é que estabelece o valor inicial para um determinado concurso, é o especialista? Não é, mas devia ser. Devia ser um organeiro que não concorresse a esse concurso, mas que definisse o preço justo do concurso.

 

É mais fácil trabalhar com a igreja católica, com o estado central ou com as autarquias?
Com nenhuma delas é fácil trabalhar. Deixámos cair pontos nevrálgicos em termos de identidade, refiro-me aqui, como já disse, à Fundação Ricardo Espírito Santo e o Instituto José Figueiredo.

Como se perdeu essa identidade, do lado da igreja enfrentamos uma comissão fabriqueira que tem a melhor das intenções porque pretende recuperar a peça, mas que nada entende de restauro. O padre, que assume a presidência da comissão, e que diz que “quer assim”, independentemente, da bondade da decisão que toma, algumas vezes, não aceitando a lógica da intervenção. A igreja assume a propriedade de muito património, e aprendeu rapidamente a dizer que “dinheiro não há”, como se o contribuinte não fosse o mesmo.

O estado, por seu lado, trata a igreja como se fosse um personagem, uma pessoa, quando devia assumir que uma boa parte dos contribuintes são católicos (ou protestantes, consoante o país onde vivem), ou seja, o crente que dá a sua esmolinha na igreja é o mesmo que contribui para o estado com os seus impostos.

JM2019.07.01 19h12m30s 018.pngRelativamente aos municípios, se procurarmos o caminho mais correto, mais direcionado à intervenção no património, mais focado na sua recuperação do que na sua rentabilização, aí, Mafra aproxima-se mais daquilo que deveria ser a política das autarquias. Mostra disponibilidade para o património e dá importância à sua recuperação. Há, no entanto, a necessidade de fazer um levantamento sério que permita separar o trigo do joio em termos de recuperação do património.

O património não está a ser rentabilizado pelo estado, ou pelos municípios e muito menos pela igreja. Por exemplo, são raras as igrejas que têm um organista titular, habitualmente, o organista faz o serviço por favor, não têm obrigação, não têm aprumo artístico.

Eu como organeiro recuso-me a fazer manutenção num instrumento que não toca, pois, penso que fazê-lo, não seria sério. Se o instrumento não funciona, eu não sei o que é que ele precisa.

O estado, devia fomentar a valorização dos instrumentos na perspetiva do ato cultural em si, contribuindo também, assim, para a conservação dos instrumentos pelo uso.

 

Em sua opinião, como é que foi possível deixar chegar os carrilhões e os órgãos do PNM ao estado lastimável de degradação a que chegaram?
É uma questão de prioridades, em que se incluem a vertente financeira e a vertente cultural, sendo que o verdadeiro problema reside no processo educativo.

Habitualmente, já que os instrumentos são peças dinâmicas, a degradação dos instrumentos musicais reside no facto de não tocarem, por não serem utilizados. Por outro lado, em Portugal não se dá grande importância à investigação focada na música antiga portuguesa, o que a ocorrer, permitiria valorizar os instrumentos antigos.

Nos anos 50 e 60 do século passado ocorreram intervenções lesivas dos órgãos, no intuito de os tornar capazes de interpretar música de outro tempo, que não aquele em que foram construídos. Ora, isto aconteceu com os órgãos da Basílica do Palácio Nacional de Mafra.

 

JM2019.07.01 19h12m06s 017Mas a situação que refere, já foi, entretanto, colmatada ou não?
Evidentemente que sim. Só um órgão é que espelha essa origem, pois os outros 5 instrumentos foram alterados por António Xavier Machado Cerdeira, para o som do gosto musical do sec. 19.

Restaurar um instrumento custa, sei lá, 100 mil euros, mas comprar um órgão em segunda mão, custa 15 mil. Parecendo assim, mais fácil comprar novo, do que restaurar. Isto liga-se também com a formação de novos organeiros, a qual só fará sentido quando se tratar de criar novos instrumentos, ou de fazer a manutenção dos órgãos que já estão instalados.

 

Quantas pessoas trabalharam consigo na última intervenção nos órgãos da basílica e quantas pessoas tem habitualmente a trabalhar consigo?
Esta última revisão foi um trabalho efetuado com a minha equipa, com uma formação diária. Tenho 4 pessoas a trabalhar comigo.

Procedemos à limpeza geral de todos os instrumentos, ao tratamento das madeiras, à limpeza e à hidratação de algumas peças. Entrou-se depois no processo das correções sonoras e posteriormente na afinação.

Gostava de referir que, por cada órgão, foram limpos e manuseados, só na componente de produção sonora, cerca de 2.000 tubos.

 

O que é que gostaria de deixar feito para o futuro, em termos de formação na sua área?
O que nos identifica enquanto portugueses é a nossa cultura, é a nossa gastronomia, a nossa forma de falar, a nossa forma de estar e de vestir, a música, o património, a nossa identidade passa por tudo isto. E hoje, que tanto se fala em turismo, quem nos visita, vem precisamente à procura disso.

Entristece-me bastante ver o estado, que embora tenha a preocupação do restauro, não tem a preocupação da manutenção. O estado, “não tendo vergonha na cara” mostra aos que nos visitam, o nosso património já degradado, por isso me preocupa o aspeto da formação em conservação e restauro.

Em Mafra, há 17 anos que ando a reclamar a constituição de uma escola para ensinar organeiros, para ensinar gente jovem, permitindo que alguns deles se especializem em organeria portuguesa.

 

JM2019.07.01 19h13m29s 021.pngNão há em Portugal nenhuma escola que ensine organeria?
Nem em Portugal, nem na Europa. Na Europa, nomeadamente na Alemanha, há escolas que ensinam várias matérias, entre as quais organeria.

 

Não seria mais fácil lançar esse projeto numa cidade ou vila onde já funcionasse, por exemplo, um Instituto Politécnico?
É verdade. Por exemplo, o Politécnico de Lisboa poderia criar um pólo em Mafra relacionado com os órgãos, ou com a vinda do Museu da Música para Mafra, ser criado um pólo relacionado com a oficina dos instrumentos.

 

Já sondou os políticos locais relativamente a esse projeto?
Sim, nomeadamente o senhor presidente, que tem essa preocupação, embora referindo que existe um escalonamento. O problema é que eu tenho 60 anos, e formar um organeiro, no mínimo, não demora menos de 6 anos.

O conjunto dos 6 órgãos da Basílica de Mafra é único, como único foi também o seu restauro e a sua manutenção. Neste caso, o que se mostra necessário é formar uma ou duas pessoas que entendam este conjunto até onde já se sabe, para no dia em que eu morra, não ter de se partir do zero.


Amanhã não perca a 2ª parte desta entrevista

 – A necessidade de acreditação da profissão – A Irmandade de Mafra e o restauro – As críticas nas redes sociais   – A escola de organeria em Mafra – O futuro

 

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