Crónica de Alice Vieira | Para que servem os livros

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Para que servem os livros
ALICE VIEIRA

 

Há já algum tempo lembro-me de ter aqui falado de livros para deitar fora. Queria eu dizer, livros tão maus, mas tão maus que nem ao meu pior inimigo os daria.

Claro que não se trata de livros que temos em duplicado (eu tenho cinco edições dos “Maias”, por exemplo…)  livros que já não temos tempo de reler, livros de que, pessoalmente nem gostamos muito mas de que os outros gostam (eu, por exemplo, detesto ficção científica mas aceito que outros amem de paixão.  Desses vou dando sacos e sacos, para escolas, bibliotecas, etc…

Mas a verdade é que—sem falar dos tais que só servem mesmo para ir na camioneta do lixo–os livros servem para muita coisa.

O meu filho, em criança, não lia nada. A irmã lia tudo e mais alguma coisa…mas ele nada.  Mesmo nada. Eu desesperava, e ele atirava–me sempre com o melhor dos argumentos:

–Não tenho boas notas na escola?

Tinha. Tinha até muito boas notas e as professoras adoravam-no. E lia muitos jornais, e sabia sempre o que se passava pelo mundo.

Mas ler um livro…isso é que não.

Um dia, para meu grande espanto, pediu-me “As Naus” do Lobo Antunes.

Pensei ter ouvido mal. Devia ser outra coisa.

— “As Naus?”

–Sim, mãe. Dá-me “As Naus” do Lobo Antunes.

Fui à estante buscar o livro, entreguei-lho, e ele meteu-se no quarto.

Nessa tarde contei ao meu marido—que torceu o nariz, sem acreditar muito—e liguei a todas as minhas amigas a relatar o milagre.

E logo o Lobo Antunes, um autor tão difícil de ler!

Muitos dias depois, achei que ele já tinha tido tempo de ter lido o livro todo, e tornei a pô-lo na estante. Por momentos até pensei que se tivesse desinteressado dele às primeiras páginas, mas que não tinha estado para o arrumar. As arrumações, tal como os livros, nunca tinham sido o seu forte.

–Ó mãe, onde é que puseste “As Naus” do Lobo Antunes?—gritou assim que chegou da escola nessa tarde.

Com ar meio zangado.

Fui a correr buscá-lo e passei-lho logo para as mãos.

Ele voltou a enfiar-se no quarto com ele, e eu continuei feliz por aquele verdadeiro milagre. Preparava-me já para acender uma vela a St.Expedito, o santo das causas impossíveis.

Passaram-se dias, muitos dias, e o meu instinto de arrumação fez-me tornar a levar o livro para a estante.

Nessa tarde, ao chegar da escola, a voz dele foi mesmo de muito zangado.

–Ó mãe, mas por que é que tu tiras o livro da minha mesa de cabeceira?!

Entreguei-lho— mas dessa vez não resisti:

–Pelos vistos estás a gostar muito do Lobo Antunes! Fico mesmo contente!

Nunca vi um ar tão espantado:

–Eu??

— Sim, tu! Já tens o livro aí há uma data de tempo!

Foi então que ele desatou a rir.

— Eu? Ler “As Naus”? Nunca!

–Então?

–É que numa das páginas tomei nota do telefone de uma namorada. Por isso é que estou sempre a precisar dele.

Pronto. E aqui temos mais uma utilidade dos livros.  Uma grande utilidade mesmo: a  namorada disse-lhe “ou tu lês o que eu leio, ou acaba-se tudo.” Remédio santo: hoje ele é um leitor compulsivo e estão casados há 24 anos…

Pois é. Os livros servem para tudo.

 

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