Crónica de Jorge C Ferreira | Os Meninos do Coro

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Os Meninos do Coro

A dona Virtude, a dona Clemência, a dona Pureza, a dona Inocência e a santa castidade. As múltiplas orações, o genuflexório, os castigos infligidos, aceitar a dor.  A capela lateral da igreja. Todas de preto estão aquelas mulheres. Lenços na cabeça. Rosários na mão. Um murmúrio sem interrupção. A maquinal reza. O bichanar, dizem alguns. Os meninos do coro ensaiam novos cânticos. Está escura a Igreja. Ouve-se o crepitar das velas.

As falsas virtudes. Os véus que tapam as vergonhas. Os meninos do coro desfilam cantando. Os Senhores que descobrem a cabeça e ficam com a careca à mostra. Um mapa de pecados que a falta de cabelo deixa ver. A mão a bater no peito três vezes. A tosse que os trai. As noitadas fora de casa. Um Cristo crucificado por tudo isto e muito mais. Um Cristo que, do alto da cruz, não gosta do que vê. Choram Maria e Maria Madalena.

Aqueles fatos negros e compridos com botões de cima abaixo. As enormes e antigas batinas. Homens de saias, dizia o meu Avô republicano e anticlerical. Uma coroa no cocuruto. O clérgima, esse colarinho branco e rígido. Uma cruz ao peito. Os meninos do coro, em fila, cantando. Os confessionários. Os casos proibidos. As perguntas incómodas. As meninas coradas. Um suado rubor. As falsas penitências. Os joelhos cansados. As pernas usadas. Aquele meu tempo tão antigo. Aquela minha alva.

Branco, vermelho, violeta, são as cores dos solidéus. Os barretes cardinalícios. Os anéis. A roupa branca rendada e o vermelho, a imponência. Algum luxo. O joelho no chão o beijo no anel. O báculo. A cor púrpura do poder. Os meninos do coro, lá vão em fila indiana, cantando.

A missa, o santo sacrifício, o latim que foi abandonado, a homília, a consagração, a comunhão. Os meninos do coro cantam, tão afinados que estão! Os acólitos ajudam o padre a tirar os paramentos. Cordões que se desenrolam. As várias cores. O tempo de acreditar. O tempo de se sentir agradecido.

A última ceia. Partilhar a vida. O eterno Judas. O beijo fatal. O pão e o vinho. Os trinta dinheiros. O julgamento dos poderosos. O caminho do calvário. As chicotadas. O monte das oliveiras. A crucificação. Os ladrões. Tudo tão intenso, tão forte. Só me vem à memória a “Pietà”.  Ouvem-se os meninos do coro.

O catecismo. Os catequistas. Um deus terrível, castigador. Um deus que me venderam. As terríveis labaredas do inferno, o infindável impasse do purgatório. Os inenarráveis pecados, a contrição, o que não tinha perdão. Na cruz, Cristo fulminava, com os olhos, esta gente. Os frustrados padres continuavam o ensino do terror. Os meninos do coro choravam.

A dona Virtude, a dona Clemência, a dona Pureza, a dona Inocência e a santa castidade, estão de novo na capela lateral. Os mesmos bancos, os mesmos lugares, os mesmos santos. Continuam com o rosário na mão. Prometeram rezar para serem salvas dos fogos do inferno. Esperam pela missa das sete da noite. Irão comungar. Regressarão ao lar onde continuarão a rezar. Os cansados meninos do coro continuam a ensaiar.

«Olha lá, tu hoje estás a abusar. Já te disse que não gosto destes falatórios.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes, minha amiga, há coisas que não devemos calar.»

Respondo.

«Sim, sim. Olha, toma nota do que te digo.»

De novo Isaurinda e vai, a pureza na mão.

Jorge C Ferreira Março/2019(199)

 

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os Meninos do Coro”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado, Sara. Nunca calar. Estar sempre atento aos poderes. Abraço

  2. Sara Paiva

    Palavras que foram sendo acrescentadas a uma história que se passou há tanto tempo. As falsas virtudes e as carecas que se mostram. A história hoje não é tão terrível como se contava dantes. No entanto, continuam a confundir as rezas com as boas atitudes, que ausentes, não fazem crescer as consciências. Gostei muito. Às vezes é preciso tocar em certos temas. Beijinhos.

  3. Cristina Ferreira

    Jorge, a querida Ivone disse rigorosamente tudo o que sinto a respeito de ti e deste tema tão sensível e entendo-te agradecendo o não calares. És um ser muito especial! Obrigada

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Que bom ler as tuas palavras. Abraço

      1. Cristina Ferreira

        Outro

  4. Maria da Conceição Martins

    Como eu gostei deste texto, Também viajei no tempo e conheci a Igreja de que fala. Hoje de facto a Igreja não me diz muito. Salvo raras excepções e há-as, estiveram sempre do lado errado da história. Foi assim no Holocausto, foi assim na Guerra Civil Espanhola, só para dar dois exemplos flagrantes. No entanto continuo a ter muito respeito por alguns homens e mulheres da igreja que fazem um bom trabalho junto dos mais pobres e desprotegidos deste mundo. Grande abraço amigo Jorge e continue a não calar o que lhe vai na alma.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria da Conceição. Tudo nos serve de aprendizagem. Nunca desistor de aprender. Abraço

  5. Madalena Pereira

    Obrigada por esta crónica excepcional! Era tempos de mentiras e muita hipocrisia como aqui tão bem descreve, querido amigo! Também bebi dessa água mas não me tirou a sede…Continuei em busca da Verdade. Hoje não frequento igrejas nem os seus rituais fazem parte das minhas tradições. Acredito no Poder do Pensamento e nas Leis do Universo,Tudo é Energia! O Jorge é um iluminado! É sensível, inteligente e um homem bom. Apesar dos medos que lhe incutiram no Catecismo manteve-se igual a si próprio e à sua Essência e não temeu represálias do “Deus vingador” . Parabéns por ser como é! Um beijinho

    1. Madalena Pereira

      Eram tempos…

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Tanta coisa. Tão generosa. Aprender sempre. Abraço

  6. Regina

    O que conhecia da educação religiosa de outros tempos foi-me transmitida pelo meu pai. Claro que nunca me confessei. Há quem diga que não devo falar acerca da religião uma vez que não tive orientação nesse sentido. Depois de ler a tua crônica, mais me convenço que não conheci a obediência expressa de forma doentia, isenta de lucidez e liberdade. Um abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Vamos continuar o caminho. Abraço

  7. Teles Ivone Teles

    Filha de um republicano anticlerical e também neta por parte da mãe de outro ( filho de um padre quando a mãe tinha 13 anos ) eu e irmãs não tivemos qualquer instrução religiosa. Mas adivinho pelo que fui sabendo e também por alguns escritos teus que soubeste cedo dessas práticas, ditas religiosas, mas muitas vezes de uma enorme hipocrisia. Com a tua habitual escrita cinematográfica, vi o filme e senti como deves ter sido magoado com elas . Querido amigo, superaste o negativo e hoje és o Homem sensível, sempre atento ao que pode magoar os outros, mas também sempre disposto a ajudar e confortar. És um amigo certo, escreves com o coração e a inteligência e gostamos muito . Tens razão quando dizes à Isaurinda que ” há coisa que não devemos calar. ” É preciso avisar toda a gente ” disse um poeta e tu podes ser um apóstolo da VERDADE, da autêntica verdade. Beijinhos ternos Jorge e obrigada pelo que nos transmites. Beijo amigo.
    .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Tanto saber no teu comentário. Generksa como sempre. Brilhante. Abraço

  8. Célia M Cavaco

    Mais um texto onde se impõe a releitura. Diria até que um quadro de aldeia pendurado por cima do crucifixo. Quase diria,um texto de santos e pecadores em dia de procissão. A Isaurinda na sua bendita fé, é uma mulher temente a quem deixa o rosário perdido numa fé que espreita os dias…abençoados todos os que há noite repousam a fé em algo inexplicável. Abraço meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Que bom. Os santos e pecadores. Que maravilha ter a tua opinião neste espaço. Abraço

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