Crónica de Alice Vieira | O Anjo

CAPA ALICE VIEIRA.fw
[sg_popup id=”24045″ event=”onLoad”][/sg_popup]

O Anjo
Alice Vieira

 

Naquele tempo os homens da Costa Nova saíam cedo de casa e demoravam muito a regressar. Iam todos para a pesca do bacalhau, lá nos confins do Mar do Norte, e as mulheres ficavam com todo o peso da vida às costas—a casa, os filhos, os parentes velhos, e ainda a pequena horta de que era preciso tratar.

Eram mulheres fortes. Havia mesmo quem dissesse que eram mulheres duras,  sem voz nem vagar para um carinho, um mimo, um afago.

As crianças da casa sabiam que era nelas que estava o mando e a decisão. Os homens eram aqueles seres estranhos que de vez em quando apareciam, traziam dinheiro e deixavam os filhos pendurarem-se-lhes nos ombros, “porque é preciso gozá-los agora, daqui a nada a gente está de volta ao mar e sabe-se lá quando voltamos”

Os homens eram sorridentes e cheios de paciência. Contavam histórias, fumavam cachimbo, mascavam tabaco. As mulheres não tinham tempo para histórias que não fossem as do seu dia a dia, meses e meses a fio largadas à sua sorte. Muitas nem sequer tinham tido tempo de ir à escola, porque desde crianças que eram necessárias para ajudar em casa.

Também a avó Ana nunca fôra à escola. Criara filhos e netos que andavam pelo mar, e um dia, passava ela já dos 70, no meio do silêncio em que sempre se faziam as refeições, declarou:

–Apareceu-me um anjo esta noite.

As crianças da casa olharam para a Avó Ana que, imperturbável, continuou:

–O anjo mandou-me aprender a ler.

O silêncio continuou, apenas os olhos das crianças ficaram maiores e mais redondos de espanto.

Daqueles que ainda estão hoje vivos—e são alguns, felizmente– nenhum é capaz de explicar muito bem o que aconteceu a seguir. A Avó Ana sabia apenas que nunca se deve desobedecer aos anjos, sobretudo aos que têm o trabalho de nos aparecer a meio da noite.

Nunca mais voltou a falar no assunto, porque as mulheres nunca repetiam uma ordem ou um desejo: o que se dizia uma vez, dito ficava para sempre.

Ela própria se encarregou de procurar professora, o que não foi difícil: chamou lá a casa a Menina Marquinhas que, na aldeia, já tinha ensinado os filhos e os netos de toda a gente.

A princípio também esta se admirou, mas a Avó Ana não admitia sequer a mais leve expressão de dúvida na cara dos outros: um anjo dera-lhe uma ordem e na terra ninguém desobedecia às mulheres, muito menos quando estas eram visitadas por anjos de madrugada.

Se o anjo voltou a ter interferência na aprendizagem da Avó Ana não se sabe, nem ela o disse.

Sabe-se apenas que a Avó Ana aprendeu a ler e a escrever no espaço de um mês.

–E sem dar um erro!!!—exclamava sempre a Menina Marquinhas.

–Foi o anjo—era a sua única explicação.

Dizem que, desde essa altura, um anjo passou a velar pelos destinos das mulheres da nossa família. Entre a comunidade celestial devemos gozar da fama de sermos exemplarmente obedientes às ordens que nos dão.

 

Leia também