Crónicas de Jorge C Ferreira | Caminhadas

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Caminhadas

Temos sempre caminho pela frente. Por vezes apenas um passo. Uma curta viagem. Outras vezes vidas que se contam em léguas, milhas, quilómetros. O mundo inteiro no bolso. Um mapa todo riscado. Um globo que faz girar a nossa cabeça.

Ser peregrino, andarilho, caixeiro viajante, vagabundo. Percorrer vidas e estradas sem saída. Chegar perto de um santo, de um deus, de uma iniciática aventura. Amar uma bruxa à roda de uma fogueira. Experimentar o sabor de todos os venenos e resistir. Beber um cálice de absinto, saber das guerras do ópio, percorrer a rota da seda. Colher uma papoila e sugá-la sofregamente. Chegar a Santiago e abraçar o apóstolo.

Tanto mundo e tão pouco tempo. Tanto mar para atravessar. O outro lado. O outro viver. A outra inquietação. As linhas imaginárias e a nossa falta de imaginação. As viagens dos poetas. Os poemas de todo o mundo. Os escritores universais. Coisas difíceis de explicar. Amores que todo o mundo abraça.

As civilizações desaparecidas. As avenidas iluminadas. As pirâmides de muitas vidas e mortes. Aquela escrita desconhecida. De repente um barco, uma canoa e uma mulher nua. Uma outra peregrinação. A pureza da nudez. Voltar ao início de tudo. Alonga-se o caminho. Cresce o desejo. Vamos aprender a ler de novo.

As fronteiras da discórdia. Os campos de batalha. As armas sem fim. O sangue do dinheiro. Cemitérios enormes de gente inocente morta à queima roupa. Os restos mortais dos vários soldados desconhecidos. Tantas mães a reclamarem os seus filhos. Uma terra que aquece. Um mundo em ebulição. As pedras da calçada. O fogo e as facas. As noites de insónia. As botas cardadas. A força bruta. As cidades que nos lembram as marcas recentes da brutalidade dos ditadores. O alerta sempre necessário. “Chove em Santiago”, Neruda escreve mais uma canção de amor. O Pacífico espera por ele. Matilde dá-lhe um beijo.

A caminhada dos guerrilheiros. As barbas e os cabelos longos. A serra que ninguém esquece. As guerrilhas sem fim. O desgaste e a esperança. A asma do comandante. Os “puros” que libertavam todo o fumo da glória. Os íngremes caminhos. A dificuldade de chegar ao topo. O caminho entre Santiago e Havana. Uma outra caminhada. Ouve-se “Hasta siempre comandante”.

Os caminhos palmilhados pelos cantautores. O canto livre e a liberdade de cantar. Chegar aos sítios onde não havia nada e fazer soar o hino da liberdade. Os soldados de barba e cabelo comprido. «O meu filho morreu lá fora», diz uma mãe a um soldado. Viagens sem regresso. A vida madrasta. «Era tão bonito o meu rapaz!» continua a sofrida mãe vestida de negro para o resto da vida.

“O soldadinho não volta do outro lado do mar.” Diz a canção.

Aquela linda caminhada entre Santarém e Lisboa, o bravo capitão, os bravos capitães. O “Grândola Vila Morena”. A coragem de enfrentar a besta. O povo na rua. O Largo do Carmo cheio de vida. Os cravos nos canos das “G3”. Uma caminhada que mereceu a pena.

De muitas caminhadas se faz a vida.

«Parece que vieste nostálgico!»

Voz de Isaurinda.

«Nada, só falei de várias caminhadas.»

Respondo.

«Está bem, eu conheço-te.»

De novo Isaurinda e vai o pano na mão.

 

Jorge C Ferreira Dezembro/2018(188)  

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10 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Caminhadas”

  1. Cristina Ferreira

    “Temos sempre caminho pela frente” – Seguir em frente é sempre o caminho. Não há outra maneira de viver a vida.
    Uma bela crónica onde és tão tu. Tão tua. Obrigada

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Seguir o caminho. A estrada toda. A estrada azul. Vida. Abraço

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado Ivone. Só para ler os teus comentários, vale a pena escrever. Tão belo o que escreveste,minha amiga/irmã. Fico sem palavras. Beijos

  3. Claudina Silva

    Muito belas as tuas caminhadas! Obrigada Peoeta! Amei

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina. Que bom ter-te por aqui. Sabe,bem ler o que escreves. Abraço

  4. Eulália Coutinho

    Viagem ao fim do mundo. Ida e volta. Viagem através dos tempos.
    Sentir profundamente..
    A Isaurinda com o pano na mão. Sempre fiel e cautelosa. Conselheira.
    Crónica maravilhosa. Obrigada poeta escritor.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Generosa amiga e leitora. Gosto muito do seu comentário. Quantas vezes viajamos ao fundo de nós. Abraço.

  5. Madalena Pereira

    Sensacional! O autentico retrato de um cidadão do mundo! Tanta terra e tanto mar nos trouxe aqui, neste texto, hoje. Querido amigo, amei e ofereço-lhe virtualmente um cravo vermelho. Liberdade! Obrigada, querido amigo. Tenha uma boa noite, um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Que gratificante let o que escreve. Como sabe bem! Abraço muito amigo

  6. Ivone Teles

    As caminhadas da vida, das vidas. São várias as pessoas com as tuas vivências ? Por onde andas quando nos foges? que rica a vida de quem assim caminha. O mundo aos teus pés. O mar ao teu redor. Sempre terra; sempre água. De uma para a outra rios e ribeiras. Barcos e canoas. Nelas vêm as puras mulheres que amas. Necessitas dos elementos todos: ar, água, fogo e terra/ chão. O teu chão aonde é, querido amigo que chegas e partes? As caminhadas são o oxigénio que te faz viver. Ninguém pode pensar que te prende. És um homem livre que não aceita grilhetas. Quando o ar rareia e a terra quer prender-te foges, voando, para outros lugares. Bastam-te os elementos naturais do planeta. Chegas e respiras LIBERDADE. Convidas as deusas para te acompanharem. Os comeres são os locais .; as bebidas também, porque tudo queres experimentar para seres ” um deles “. Vives e guardas as imagens. Dormes e guardas os sonhos. Só voltas quando te refizeste. Tens outros amigos que te amam e entendem. E tens, sempre, a Isaurinda com o seu pano que, uma vez por outra, te chama para a realidade onde te refugiaste. Não há dia certo, mas voltas para nós, amigos que também guardas contigo. Beijinhos querido amigo/ irmão, querido Jorge. <3 <3

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