Crónicas de Alexandre Honrado – Permitimos a imbecilidade que somos (é simples)

CapaAHonrado
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Permitimos a imbecilidade que somos
(é simples)

 

Quando eu era miúdo o mundo era fácil de entender.

Na Europa, esse continente que não o é – olhem para o mapa e verão como é uma pequena excrescência, pobre, da Ásia, com muitas manias intelectuais e autocentradas – havia pelo menos três ditaduras de fôlego que viviam dos seus crimes e autoritarismos: a portuguesa, a espanhola e a grega; na continuação desse continente uma superpotência, reedição atualizada do potente regime despótico dos Romanov que ensombrou séculos e escravizou e matou tantos milhões, feita da omissão de valores de dignidade pessoal, erguia-se uma sucessora déspota e criminosa, que ensombraria décadas, escravizando e matando milhões: a URRS. O seu imenso território significava a união de várias repúblicas subnacionais – uma enorme, a Ucrânia -, e a política de um regime uni-partidário, nascido em 1922. Exatamente em 1922, na sequência das revoluções de 1917 e de uma guerra civil fratricida, liderado pelo Partido Comunista local, o novo regime imitava a história que aparentemente negava, pintando de vermelho as antecedentes cores difusas dos czares. A uma autocracia imperial sucedia a euforia ditatorial dos bolcheviques (os maioritários) que acabaram por tornar-se plenamente vitoriosos. Formou-se assim uma União, que era afinal o unificar político de universos culturais e políticos distintos, batizados como repúblicas soviéticas: Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia.

No mundo ocidental, havia ainda a América, ou melhor, os Estados Unidos da América, um território feito de ferro e fogo e alguns sonhos, que invariavelmente com uma arma na mão impunha terror e ordem sobre os mais fracos e desprevenidos, matando índios (os povos autóctones, entenda-se), mas também os presidentes da República ou os improváveis inimigos estrangeiros que chacinava sempre em outros territórios. Pior ainda, cultivava a banalidade com que se capacitava o cidadão comum, estimulando-o a matar o seu próximo. A lei de Lynch – que deu o nome ao linchamento, ato público de justiça feita pelas próprias mãos, pode dever o seu nome ao coronel Charles Lynch ou ao capitão William Lynch, que por serem ambos vergonhosas representações da condição humana, não desenvolverei em biografia. Digo apenas que, quanto à lei de Lynch, aplicada por ambos em épocas diferentes, foi iniciada meio século antes da sua prática continuada, em 1837, designando o desencadeamento do ódio racial contra os índios.

Estando no ADN dos americanos, desde os pioneiros à forma como durante a guerra da independência se matavam os pró-britânicos, por volta de 1782, ou como se promovia a tiro e execução primária a manutenção da ordem durante a revolução de 1780, ela chega até hoje com um novo Lynch de vistas curtas e armas grossas, o (mal) famigerado Trump dos atentados aos direitos humanos.

Quando eu era miúdo era tudo mais fácil.

As duas superpotências de então – URSS e EUA – eram capazes de dividir entre si e sobretudo de controlar as pulsões conflituosas do mundo de então. Hoje são duas potências regionais e saudosistas de uma história que lhes escapou. A URSS desfez-se, a América sobrevive das guerras que inventa. Até a China é maior, graças ao seu formato comunista capitalista aparentemente renovador.

Entretanto, estamos a perder o rumo do mundo, ao permitirmos a imbecilidade. Todos fazemos parte da história. Todos somos atores num palco global. Mas alguns de nós deixaram de conseguir ler o texto, decorar as falas e até de representar seja o que for.

 

Alexandre Honrado

Historiador

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