Crónica de Alice Vieira | Fim do Ano em Outubro

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Fim do Ano em Outubro
Alice Vieira

 

Nunca me lembro de ter pensado no mês de Dezembro em termos de fim do ano.

Para mim, durante anos e anos (e um pouco ainda hoje, em função do trabalho que faço) só havia anos lectivos e, nos meus tempos de criança e adolescente o ano começava em Outubro e acabava em Julho – e entre eles seguiam-se uns meses de ninguém em que nada acontecia, a não ser umas leves e brevíssimas paixonetas, uns quilos a mais, e as saudades de regressar ao tempo normal.

As aulas começavam logo no dia 1 de Outubro—com direito (no Liceu Filipa de Lencastre, onde sempre andei ) a sessão solene.

O ginásio transformava-se em enorme salão de festas, onde se sentavam as professoras (nas filas da frente), e as alunas e respectivas famílias nas filas de trás.

No palco uma grande mesa, onde se sentavam a reitora e a vice-reitora, e a professora que naquele ano ia fazer o discurso; e onde se amontoavam livros e papéis.

Coisa séria, mesmo.

Depois as alunas começavam a ser chamadas para subirem ao palco, onde recebiam os prémios a que tinham direito, a saber:

a) Diploma de assiduidade (para aquelas burrinhas, coitadinhas, mas que nunca tinham faltado um dia que fosse)
b) Diploma para quem tinha estado no Quadro de Honra os três períodos todos
c) Diploma para quem tinha tido pelo menos média de 16 numa ou mais disciplinas individuais.

Aquilo era um nunca acabar de palmas e bravos, essas coisas em que as famílias se especializavam, e nós lá andávamos a cirandar pelo palco.

Porque tudo obedecia a um protocolo: nada de lá chegar e arrecadar todos os prémios a que tínhamos direito.

Não.

Chamavam o nosso nome –“Menina X” média de 17 valores a francês!”— e lá subíamos, beijocávamos a professora, pegávamos no diploma e regressávamos ao nosso lugar, enquanto desfilavam todas as outras que também  tinham tido 17 valores a francês

Mas se por acaso também tínhamos tido boas médias a inglês, português, história, etc, etc…–lá voltávamos a subir ao palco quando chegava a vez dessas disciplinas e voltávamos a beijocar e voltávamos ao nosso lugar. Nada de acumular as coisas.

Quem tinha mais de 18 valores de média a uma disciplina tinha ainda direito a um livro. Lembro-me, à distância de 60 anos, de ter recebido um romance francês chamado “Mon Oncle et Mon Curé”, de que ainda hoje recordo vagamente a trama: uma jovenzinha muito apaixonada por alguém que vivia com uma tia doente e, com a ajuda do tio e do cura, conseguia casar com ele.

(De cada vez que o padre das Lapas –uma freguesia perto de Torres Novas, a terra da família– ia almoçar lá a casa, eu ficava horas a olhar para ele, tentando perceber se ele seria capaz de tão boa acção como o colega francês…mas nunca o achei capaz disso…)

E era sempre assim que o meu ano começava. No dia 1 de Outubro—mesmo depois de o calendário escolar ter tido se de se adaptar à Europa, e tudo começar em Setembro.

E mesmo depois dessas cerimónias terem ido pelo cano abaixo,,,

Mas o meu princípio de ano continua a ser em Setembro.

É então que faço projectos, mudo as fotografias das molduras, prometo mandar cartas e postais a toda a gente  e não falhar um dia de anos de ninguém, escolho novos livros de palavras de cruzadas para a mesa de cabeceira, começo a tricotar um cachecol que me foi pedido, ponho a agenda em ordem.

Um ano, novinho em folha, espera sempre por mim em meados de setembro, como dantes esperava no dia 1 de Outubro.

E durante muito tempo até fazia uma festa de passagem de ano nessa altura.

Depois desisti.

Quando a minha filha um dia me telefonou, com uma voz tão cheia de riso que eu mal conseguia perceber o que dizia.

— Pelo amor de Deus, mãe!, deixa-te dessa maluqueira de quereres festejar o ano novo em Setembro! Não fazes ideia da quantidade de gente que me tem telefonado a perguntar se o que tens é assim tão grave, se é mesmo um caso tão desesperado que nem tens a certeza de poderes chegar a Dezembro!

E durante muito tempo ficámos as duas, feitas parvas, a rir ao telefone.

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