Crónica de Alice Vieira | Família é sempre família

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Família é sempre família
Alice Vieira

 

Há muito tempo que queriam encontrar-se, mas era sempre complicado arranjar data que conviesse a todos. Mas este ano, um deles dissera “aproveitamos o mês de Abril, festejamos a Páscoa, agora é que é”. E finalmente os cinco casais de irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, pela primeira vez em 30 anos, iam ter um mês de férias em conjunto.

Era o sonho de uma vida inteira.

Brasis e o Paris das emigrâncias tinham-nos afastado—e agora, já todos finalmente reformados, queriam pôr a vida em dia, contar histórias, lembrar os que já tinham partido, recordar afectos e memórias.

Iam ser, pela primeira vez, uma família a sério, daquelas felizes e despreocupadas, como nos cartazes de publicidade às companhias de seguros.

O irmão mais velho, apesar de viver em Lisboa, tinha uma moradia para os lados de Fonte Boa dos Nabos que dava para toda a gente. “Ainda bem que este mês não a aluguei!”, disse, cheio de alegria, “temos a Ericeira a meia dúzia de passos, podemos visitar o Convento de Mafra, aquilo é mesmo uma maravilha!”.

O reencontro foi uma alegria, pareciam miúdos de escola quando voltavam de férias e queriam contar tudo logo no primeiro intervalo.

Uma das cunhadas murmurou apenas “Nabos??? Raio de sítio!!”, e outra perguntou se por acaso ali não haveria melgas. O mais velho zangou-se, melgas?, mas ela pensava que estava no Pantanal ou quê?

Não voltaram a tocar no assunto.

“Vamos à Ericeira comprar Ouriços”, disse o mais velho logo na primeira tarde, depois de todos já instalados.

“Mas quais ouriços, o que eu quero é o folar da Páscoa! Uma Páscoa sem folar, já pensaram bem ? Mesmo quando a gente estava em Châtenay eu encontrava sempre folar, bien sûre,  também hei-de encontrar aqui neste fim do mundo”.

“Neste quê??” respondeu o cunhado ofendido, “fica sabendo que a Amélia tem sempre tudo o que é preciso!”

“Je m’en fous, quero lá saber dessa Amélie, quero é o meu folar!”

O cunhado tentou explicar-lhe que era o nome de um supermercado onde havia tudo, absolutamente tudo, tomara ela ter um igual em Châtenay .

Acalmaram-se.

Ao fim do terceiro dia ainda não tinham decidido quem é que fazia a comida, quem é que lavava a loiça, e como se dividiam as despesas.

“O Ricardo é um machista de primeira”, murmurou então uma das irmãs “, “ nem para ir buscar uma cerveja ao frigorífico ele se levanta do sofá! Palavra que não sei como a Carmo o aguenta!”

Mas ou o murmúrio não foi suficientemente murmurado, ou as paredes não eram suficientemente fortes, o resultado é que a Carmo saiu em defesa do marido, e que os das outras não eram melhores, que ela bem os via sentados à mesa enquanto todas andavam num virote a levar e trazer pratos e travessas da cozinha, ao que o dito Ricardo respondeu que já estava muito velho para mudar e, para ele, cozinha era lugar de mulherio, e fim de papo, tá?

“Era o que faltava, que me mandassem calar na minha casa e na minha terra!”,  berrou o mais velho, em jeito de anfitrião ofendido.

“Mas quem é que mandou calar quem?“, disse a mais nova, meio conciliadora.

Acalmaram-se.

“Todos juntos, que bom!”, exclamou o mais novo no dia seguinte, à mesa do pequeno almoço, “o nosso pai é que havia de gostar de nos ver!”

“O nosso pai?”, explodiu a irmã do meio ,” o nosso pai nunca gostou de nós! Só as vezes que ele me batia com aquele vime que escondia atrás da porta! Acho que ainda tenho as marcas!”

“Pois olha, a mim nunca me tocou!”

“Pudera, eras o queridinho dele, denunciavas toda a gente,! Ainda me lembro quando lhe foste dizer que eu tinha bebido a garrafa inteira de jeropiga, seu acusa-cristos!”

“Seu quê? Repete lá isso, repete, a ver se tens coragem!”

Ela teve .

E ele só não lhe foi à cara porque os outros o seguraram, “então, Zé, estamos aqui em família, tão felizes!”

Ao quinto dia houve um problema de contas de supermercado.

“Estás-me a acusar de meter dinheiro ao bolso, é?”

“Ó Felícia, mas quem é que está a dizer uma coisa dessas?”

Aguentaram uma semana.

Depois fizeram as malas e cada casal foi à sua vida –-prometendo todos  mandar um belo cartão de Boas Festas pelo Natal.

Porque família é sempre família.

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