Crónicas de Jorge C Ferreira | Ir a Lisboa e endoidecer

CAPA JORGE FERREIRA.fw

Ir a Lisboa e endoidecer

Hoje fui a Lisboa e fiquei louco. Sim, fui passear pela minha cidade. Pela minha cidade Mãe. A “cidade branca”. A cidade da luz única. A cidade do rio grande. Sim, fui a Lisboa e enlouqueci.

Que estão a fazer à minha cidade? Que invasão é esta? Onde estamos? Dizem-me que Lisboa está na moda. Mas que Lisboa? A Lisboa quase sem lisboetas? Qualquer dia temos reservas de naturais nos bairros típicos. É necessário alguém que tenha uma ideia para a Cidade. É urgente!

A chegada ao Cais do Sodré. Apanhar um táxi. A conversa com o taxista, foi enganando o tempo e o trânsito.  Tuck tucks carregados de turistas, crianças ao colo, mais o carrinho da criança, iam passando por nós. A Praça da Figueira parecia um stand, das ditas motoretas, ao ar livre. De repente pensei que estava na Tailândia, ou na Índia! Chegado ao destino, muito perto donde nasci, foi tempo de tomar um café num snack-bar. Sim, porque os cafés, cafés, já são poucos.

Uma esgotante reunião num escritório de advogados. Outra coisa que não desejo a ninguém. Teorias e tangas! A arte da dissimulação. A dor de cabeça a instalar-se. O melhor ainda estava para vir.

Outro táxi. Destino Rua dos Sapateiros. O caos instalado, carros entre faixas, faixas a mais e faixas a menos. Lá vou conversando com o taxista. Muita gente nas paragens dos transportes públicos. Com tanto carro, pouca coisa anda. Tudo a desandar.

Outro café numa esplanada. O tráfego, os escapes dos carros, eu que não fumo há muitos anos recuperei não sei quantos anos de fumo. Nas ruas, multidões. As câmaras dos telemóveis sempre em riste, selfies e pormenores. Uma menina com uma bandeirinha na mão leva um grupo de andantes que se vai arrastando entre a restante multidão. Esquina sim, esquina não, um hotel, um hostel, e muitas outras coisas para dormir e acordar cedo.

Decido subir ao Chiado. O pobre do Fernando Pessoa a olhar-me com um ar aterrado. A gente parecia saltar em borbotões da calçada. Os eléctricos, o célebre 28, a carreira que vai de Pessoa a Pessoa, pareciam os antigos carros operários. Gente e mais gente de pé, ao colo, as cabeças fora das janelas. Ninguém à pendura, ninguém a descer em andamento à ardina.

Voltemos ao pobre Fernando, ali exposto naquela esplanada. De um lado uns músicos de rua, acordeão e latas, uma percussão que ofendia todos os ouvidos. Do outro um homem estátua dourado em precário equilíbrio e com um copo de cerveja na mão. Todos usavam e abusavam do poeta, sentavam-se na mesa dele, tiravam fotos, eu sei lá. Convém dizer que, Fernando, nasceu ali muito perto, num andar virado para o São Carlos e que não tem culpa nenhuma destas bebedeiras colectivas.

Meto-me dentro da Bertrand e compro um livro. Lembro-me das histórias e das tertúlias que por ali fizeram escola. Demoro-me mais um pouco. Acho que tenho medo de ir para o meio da matula.

Fujo, vou à Vista Alegre que está vazia. Que turismo é este? Sento-me, enquanto a Isabel se demora a ver as peças de Bordallo Pinheiro. Descanso um pouco. Um banco confortável.

Descer a bela Rua do Alecrim, o Tejo lá ao fundo, a outra margem. Olho para os antiquários e os alfarrabistas que estão em perigo devido à lei da menina Cristas. Essa mente iluminada que amanhou uma lei cujos malefícios já se estão a fazer sentir, até em Santo António dos Cavaleiros. E não me venham com historietas, se a lei é má e injusta e facilita os especuladores, há que mudá-la o mais depressa possível.

O bar de antigamente,  o British Bar, ainda um empregado desse tempo. A Ginger Beer que a Isabel ansiava tinha terminado. Já não se fazem as sandes de queijo da ilha em pães pequeninos. Saudades dos companheiros de todos os dias. Daqueles fins de tarde sem fim.  Por fim o comboio. Meia hora e estamos em casa.

«Olha que tu vinhas que ninguém te podia aturar! Livra!»

Voz de Isaurinda.

«Tens razão. Foi muita coisa junta.»

Respondo.

«Quando vieres assim, vai a um lugar calmo antes de vir para casa. Por favor!»

De novo Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Abr/2018(164)

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26 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Ir a Lisboa e endoidecer”

  1. Madalena Pereira

    No que se transformou a nossa bela cidade! Estamos muito cosmopolitas….Adorei a descrição e entrei tb consigo na Bertand do Chiado – adoro! Parabéns, meu amigo por mais um belíssimo texto! Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Lisboa será sempre aquela bertigem a descer para o Tejo. As modas vão e vêm. Abraço

  2. Isabel Baião

    Tão bem retratado o que se passa com a nossa cidade. Não nasci aqui mas adotei-a . Gosto muito de Lisboa. Morando por aqui raramente lá vou. E na última vez que lá fui também fiquei incomodada com o barulho, muita gente muita agitação. Nos tempos que lá vivi andava a pé por toda a cidade. Gostava. Mas ainda há extsítios, bairros onde o cheirinho típico se faz sentir. Assim sabe bem quando se regressa e se pode desfrutar de mais calma. Obrigada por este excelente texto.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Lisboa, de quem sou filho, viverá sempre comigo. Uma doença boa. Vamos pelos seus recantos. Abraço

  3. Ana Pais

    Excelente crónica retratando o actual cenário da maravilhosa cidade de Lisboa. Adoro essa linda cidade que me acolheu na minha juventude. O cheirinho a café na Rua Augusta, a Baixa , toda aquela magia de luz e cultura. Apesar da invasão desenfreada de turistas e da poluição sonora e dos combustíveis , mesmo assim vale a pena visitar os museus e outros pontos de referência. De volta e meia visito os meus filhos que lá residem. Bem diz a Isaurinda com o seu pano de pó na mão que deve procurar um lugar calmo, que ainda os há. São sinais dos tempos, meu amigo Poeta. Vamos aprender a ser exigentes com a nossa bela Lisboa. Um abraço e bem-haja !

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. Sim, vamos pugnar pela cultura da exigência que anda tão afastada do quotidiano de muotos. Vamos exigir a defesa da arte e da cultura viva na nossa Cidade. Abraço

  4. Fernanda Luis

    Cem por cento de acordo com a Isaurinda.
    Lisboa tem mudado muito para o bem e para o menos bem.
    A inflação imobiliária, quanto a mim, é o maior problema. Jovens e menos jovens não têm recursos económicos que lhes permitam residir na Cidade. Com a alteração da lei das rendas, muitos foram obrigados a sair e assim vai continuar. Lisboa vai-se descaracterizando. Apesar da reabilitação urbana que tem vindo a ser feita, continuam a existir muitas zonas degradadas que dão dó, uma tristeza.
    Mas há muitas zonas que foram objeto de grandes mudanças. Renovação. Reabilitação virada para as pessoas / peões e ciclistas que vão sendo cada vez em maior números. Já há muitas pessoas a deslocarem-se de bicicleta. Temos de aprender novos hábitos.
    Turismo tem os seus incómodos e custos mas eu gosto tanto de ver gente e ouvir línguas diferentes. Gosto que amem a minha Cidade, que a desfrutem. Depois há a parte lucrativa muito favorável, convenhamos.
    Outro grande problema é a rede dos transportes públicos que tem de ser alargada e melhorada. Nas grandes cidades, sobretudo capitais, devemos utilizar os transportes públicos (táxis também o são). Muitas coisas ainda precisam de ser mudadas. Também as há que são irreversíveis.
    Lisboa a nova Barcelona, pois. Pena não aprendermos com alguns erros.
    Mas lhe garanto que Lisboa continua linda, com muito mais esplanadas, passeios mais largos, mais árvores. Ainda falta muito é certo e a principal mudança passa por criar condições para que os portugueses se fixem na Cidade, sobretudo os mais jovens.
    Prós e contras, ahah!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Gosto muito de Lisboa. Aco que, neste momento, não há quem tenha uma ideia de cidade. Quanto aos ciclistas é uma moda. Lisboa não é uma cidade para grandes pedaladas. São as suas sete colinas e o Tejo. São os seus miradouros e a sua gente. Há alguma modernidade que é bem vinda. A que é onovadora. Cópias mal feitas devemos dispensar. Abraço

  5. Cristina Ferreira

    Amo Lisboa! Absolutamente de acordo com tudo o que dizes, mas não me tirem a minha Lisboa. Não me tirem este céu único, este rio imenso que nos tem tanto e tanto para nos contar. Tanto azul, tanta Luz, esta cidade que não sendo a que viu nascer, viu-me crescer , abraçou-me menina ainda , embala-me todos os dias enquanto mulher. Saudades da minha Lisboa sem os malditos tuks tuks , mas o coração vibra ao presenciar o cruzamento de gerações do 28. Jorge, meu querido amigo, detesto multidões e encontrões , mas consigo ler um poema em cada esquina , ouvir um fado com quem partilho uma troca de impressões.” Endoideço” com tanta coisa feia que diariamente assisto na minha Lisboa, mas a sua inspiradora beleza inteira me domina.
    Jorge, pensava que hoje, devido ao cansaço (não, não andei pelo Chiado) ia deixar o comentário para outro dia, mas as tuas palavras e a minha Lisboa, foram mais fortes que eu. Mas não te esqueças, como sempre a querida Isaurinda tem razão. Da próxima vez , antes de ires para o “teu canto” , pensa no que ela tão sabiamente te disse. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Lisboa vale pelo que é. Pela sua originalidade. Quererem meter coisas vistas em todo o lado, dentro dela, é estragá-la. Vamos amar o Tejo. Abraço

  6. Isabel Pires

    Há muito que não vou à minha terra um ano talvez . Aqui do outro lado sempre é tudo mais calmo mas Lisboa é a mais bela cidade do mundo. Trabalhei anos e anos na Rua Ivens e na rua do Crucifixo nas minhas agências de viagens subia ao chiado comprava café de Timor aquele cheirinho… ia à Benard entratava na Bertrand cheirava os livros , comia o bife no Nicola , na Trindade … Saudades nem quero pensar ir lá e pensar que estou na Tailandia. Abraço .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Ainda podemos ir à Bertrand e ao Nicola. Também eu comecei a trabalhar e trabalhei muitos anos na Rua dos Sapateiros. Era menino. Fiz o Curso na Veiga Beirão e ia ao pão quente na calçada do Sacramento. A modernização, desde que traga inovação, seja criativa e não magoe a genuidade de Lisboa, é sempre bem vinda. Não deixem fechar mais livrarias por favor. Abraço.

  7. Esmeralda Machado

    Gostei muito da sua crónica.
    É o que sinto quando vou à Baixa. Detesto, só por razões muito especiais.
    Tenho na mente ir a uma determinada loja, que conhecia há anos, chego lá, fechada.
    É muito triste
    Um abraço amigo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. A lei das rendas ainda vai levar a mais fechos. Espero que algo seja mudado. Há uma genuidade que é necessário manter. Abraço

  8. Isabel Soares

    Poluição de todo o género… De facto, que cidade temos hoje?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Vamos ser exigentes. Exercer a cidadania. Não ceder aos menonos que se acham iluminadas. Vamos saber que Cidade queremos. Abraço.

  9. Regina Conde

    A nossa Lisboa não é a mesma há muito tempo. Agressão constante de cheiros e sons que não são desta Cidade. Para se viver a nossa Lisboa temos que caminhar por outros locais. Existem prédios de arquitectura a preservar, onde crescem árvores onde foram telhados. Algo tinha que ser feito. Nunca isto! A Sé está cada vez mais escura, o cheiro dos combustíveis dos tuck tucks já faz parte da entrada. Sabes Jorge enquanto conseguir nunca deixarei de ir ver o Tejo. A Bertrand no Chiado é terapia. Tento andar sempre a pé para fugir de gente deslumbrada. Inventam uma Lisboa. O dinheiro não olha a meios. Genuíno o teu texto. Abraço Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Os falsos modismos. A descaracterixação sem rédeas. É precisi saber encontrar a nossa cidade. Abraço

  10. Idalina Pereira

    Tão real o filme de Lisboa. A cidade que está na moda. É assim que a encontro quando lá vou. Os autocarros que fazem “o tour”. Quase fico de olhos em bico, como alguns dos turistas. Trago sempre uma grande dor de cabeça. “É areia demais para a minha camioneta”
    Obrigada pela excelente crónica. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Ir pelos caminhos que aonda não foram prostituídos. Encontrar um candeeiro e um gato. Uma roupa estendida. Abraço

  11. maria fernanda morais aires gonçalves

    Por isso, já te tinha contado, que é uma estafa. Quando decidires ir tens que te preparar psicologicamente e vai só pelos becos e travessas. Mesmo assim a minha paixão é tão grande que não resisto. É como amar alguém que nos dá uma trabalheira, mas quando se gosta, nem que seja uma vez por ano lá vais tu dar uma volta, o vício que não se vence, o amor que nunca acaba. Tenho dias que me apetecia ser invertebrado, minhoca, talvez, não ter costelas, não ter dentes, não ter cabelo, não ter pernas, tudo me dói. Nesses dias fecho-me. Quando me passa, lá vou eu, o sol, o sol o azul, o mar onde quer que seja, mas Lisboa sempre. Beijinho.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Saber os caminhos da minha querida Cidade. Saber da vida das pessoas que lá vivem. Encontrar o descanso num beco esquecido. Ir contigo. Abraço

  12. Ivone Teles

    Meu amigo, tendo em conta as devidas proporções, tive ontem uma experiência semelhante em Coimbra. Fui com o Joaquim e a minha irmã , durante a tarde, à Baixa e Baixinha da minha Cidade. Quase fiquei em choque. Pouco se ouvia falar português, lojas antigas quase não existem. As lojas são todas, ou quase, de artesanato. Tarde boa, onde estava um lugar numa esplanada?. Não, não é a minha Cidade. Contra mim falo. Deixei praticamente de lá ir no dia a dia. A Baixinha estava deserta. Casas a cair, mal cuidadas, algumas em ruínas. Na Avenida Navarro, paralela ao Parque da Cidade, a casa onde nasci, está feia de mal tratada.

    Eu imagino o que deves ter sentido. E que bem ” filmaste ” todo o cenário. Não sei quando voltarei a Lisboa, mas assim já estou prevenida. Mas, meu amigo, encontra um lugar onde ainda te sintas num espaço teu para poderes usufruir da tua Cidade e tua gente. Tem razão a Isaurinda. Procura um lugar calmo, ou será que vamos ser invadidos ?

    Senti-me mais acompanhada com a tua experiência. Vamos também lutar para recuperarmos o nosso chão. Beijinhos amigos e ternos. <3

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Isto começou por Lisboa, mas está a alastrar. Todos são bem vindos. A questão é nós não nos sabermos respeitar. Nos deixarmos invadir pelo mais fácil. Não procurarmos a exegência. Abraço

  13. Célia M Cavaco

    Não sendo a minha cidade,é a minha cidade de coração.Aprendi há pouco a conhecer os meandros da nossa Lisboa.Aprendi a calcorrear por Lisboa de mãos dadas,também se aprende a conquistar afectos por ruelas onde a vizinha grita para outra:Ó vizinha,hoje não vou ao café do Chico porque espero a minha amiga de Oeiras…
    Renasci com esta conquista,descobri uma outra Lisboa,quiçá a tua Lisboa meu amigo.Um abraço com sabores e cheiros desta nossa Lisboa,ainda à recantos nossos apesar do caos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. É a minha cidade que vai expulsando os que mais a identificam. Eu quero uma cidade moderna, mas nossa. Não uma cópia do já visto noutras cidades. Abraço

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