Crónica de Alice Vieira | Amor Virtual

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Amor Virtual
Alice Vieira

 

Computadores, smartphones, a net em geral dominam cada vez mais a nossa vida.

E o jeito que nos fazem.

Já se ama e se desama através da net.

Rápido, eficaz e indolor.

Em vez de chorarmos no ombro do homem que nos deixou implorando-lhe que volte, clicamos para o Youtube, escolhemos uma cantiga daquelas que o vão põr—esperamos…-de rastos, carregamos no “share”, e a vingança está feita, e não pensamos mais no assunto.

Há cantigas apropriadas para todas as ocasiões (para os que nos deixaram, para os que vamos deixar, para os tristes, para os alegres)  e poupa-nos o esforço de arranjarmos palavras nossas.

Mas claro que há também quem responda aos ataques e se queira defender,

” deixar-te, eu?, sabes que se não fosse a minha mulher eras tu a mulher da minha vida! “

Para esses recomenda-se o recurso aos e-cards (convém misteriosamente assiná-los “Alguém”…) : tem muita saída aquele com dois ursinhos de peluche abraçados, e de dentro do peito de ambos explodem dezenas e dezenas de coraçõezinhos vermelhos, tantos que o écran até parece montra de loja de chinês em Dia dos Namorados.

Se não se tratar de namorados, nem de zangas, mas de simples amigos ou familiares, as possibilidades são infinitas.

Nunca mais teremos remorsos por passarmos meses e meses sem falarmos com a tia Carlota, ou com a Prima Adelaide que é tão nossa amiga, coitadinha, mas também tão chata e, se a gente cai em ligar-lhe, acabamos por perder o episódio (repetidíssimo, eu sei, mas pronto) da “Vera” em que, pela 500º vez, ela chama nomes aos aos seus detectives, e eles riem.  Assim, mandamos-lhes um daqueles vídeos, encantadores, de gatinhos a lamberem as donas, ou de bebés enroscadinhos no colo de um cão.

E acreditem que há também uma gama infinita de textos para nos ajudarem nestas aflições.

Podemos escolher textos clássicos ou recorrer a autores contemporâneos.  É claro que os nomes que os assinam não têm nada a ver com aquilo…O pobre do Garcia Márquez fartou-se de desmentir uma coisa inenarrável que andou para aí a circular meses a fio—e o pobre do Fernando Pessoa não tem culpa nenhuma dos textos muito jeitosos assinados por um tal  F.Pessoa, normalmente acompanhados por uma música de fundo tipo “El Condor Pása”, ao melhor estilo Rua Augusta, e que explicam o que é um amigo e para que é que serve.

Ficamos então a saber que um amigo é aquela pessoa para quem tu vens sempre em primeiro lugar, para quem podes ligar a qualquer hora da manhã, da tarde, da noite e da madrugada porque está sempre disponível e, viva onde viver, vem a voar se sonha que precisas dele.

E então a gente clica e manda aquilo para todos os que estão na nossa lista de contactos, sem esquecer de os incluir em “bcc”, já agora , para cada um se julgar único neste mundo– e por isso no espaço de segundos todos recebem exactamente o mesmo texto, ou o mesmo vídeo, ou a mesma música, mas não faz mal .

E embora a gente não tenha tempo de fazer um simples telefonema para dizer “olá” de viva voz, garantimos, por interpostas pessoas, desenhos e cantorias, que estamos disponíveis para tudo e para todos.

E que, virtualmente, amamos o mundo inteiro.

 

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