Crónica de Alice Vieira | As nossas pátrias

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As nossas pátrias
Alice Vieira

 

Para a semana tenho de ir apanhar um avião para Paris.

Claro que, a esta hora, ao tempo que a mala já está feita. Pequena, que eu sempre aprendi a viajar só com o essencial.

E, se bem me conheço, para aí quatro horas antes do voo já eu hei-de estar no aeroporto.

Por razões de saúde, neste último ano não tenho viajado muito.

Mas até há pouco tempo quando, por exemplo, um miúdo numa escola me perguntava “onde é que mora?”–eu ria e dizia que não sabia muito bem.

Porque se eu contar as horas que passo em casa e as horas que passo noutros lugares—a casa fica, de longe, a perder…

Durmo muito mais horas em quartos de hotel do que no meu.

Passo muito mais horas em transportes do que sentada no sofá da minha sala.

Um dia, acordei tão estremunhada que nem me conseguia lembrar onde estava.

Tive de me levantar, abrir a mala, folhear a agenda—para descobrir que estava em Berna, na Suíça . (No dia anterior tinha estado em três cidades diferentes…)

Ruy Belo, chamou às esplanadas dos cafés “as nossas pequenas pátrias provisórias”.

Eu também moro em muitas pequenas pátrias provisórias que são os hotéis, os aviões e os aeroportos, os comboios e as gares.

Por aí vou fazendo a minha vida, conhecendo outras pessoas, descobrindo outros mundos.

Os meus amigos riem-se sempre muito de mim por causa das muitas horas que passo nos aeroportos.

E, por muito que tente explicar-lhes, eles não conseguem entender por que razão eu adoro aeroportos.

Mas a verdade é que um aeroporto é um lugar fascinante, uma espécie de terra de ninguém e de toda a gente, onde o anonimato é a capa de invisibilidade que nos cobre.

Podemos imaginar todas as histórias possíveis para quem se senta ao nosso lado a beber um café, ou a ler o jornal que acabou de comprar, ou a consultar pela centésima vez o écran com as horas das partidas, ou a falar (sempre tão alto!…) ao telemóvel.

Para alguém que, de repente, nos pergunta as horas, ou nos pede ajuda, ou simplesmente lhe apetece conversar.

Mas, como tudo na vida, as pátrias não são perfeitas…

Há quem tenha voos cancelados (“ e agora o que é que eu faço?” “ e por que é que ninguém nos dá informações?”)

Há quem se tenha desencontrado das pessoas com quem estava. Há quem tenha uma simples dor de cabeça e pense que vai morrer.

Há quem não entenda nenhuma palavra das línguas que ouve à sua volta.

Há quem se perca no labirinto das placas de informações.

Há quem precise urgentemente de telefonar e descobre que o telemóvel tem a bateria descarregada.

Há quem já não saiba usar um telefone de moedas.

Há quem não tenha moedas porque gastou tudo no free-shop.

Há quem tenha o vício do tabaco e anda para ali a bater com a cabeça nas paredes.

E depois…ah, depois vem o melhor de tudo, que é a altura de passarmos por aquelas maquinetas que mostram as nossas carteiras, e antes disso temos de tirar casaco, cinto, relógio,telemóvel,  sapatos—e nunca está como eles querem!

Da última vez que entrei num avião, eu estava com uma dor de cabeça daquelas.

Tinha acabado uma semana de muito trabalho, poucas horas dormidas e muitos litros de café.

Quase a entrar para o avião, e como a dor não passasse, decidi fazer o que só em casos extremos faço, a saber, tomar uma aspirina.

Vou já a passar no controle, mas antes meto o comprimido à boca e abro a minúscula garrafa de água que levava na carteira.

Eis senão quando sinto uma mão, vinda sabe-se lá donde, a arrancar-me a garrafa da boca.

Engasgo-me, tusso, há água pela minha camisola toda, procuro resgatar a garrafita—mas a funcionária olha para mim como se tivesse descoberto uma plantação de coca nos bolsos das minhas calças, e diz que eu não posso levar a minúscula garrafa de água para a sala de embarque.

Eu digo que não vou levar garrafa nenhuma, porque estava a bebê-la, ali mesmo ao pé dela, mas ela não se comove, nem com a porcaria da aspirina a dissolver-se amargamente na minha língua, e manda-me passar, “mas a garrafa fica!”.

Ficou. Praticamente sem água nenhuma, claro. Mas ficou.

E eu passei.

E depois de ter passado fui a um dos muitos cafés da sala de embarque, comprei outra garrafa, e lá fiquei tranquilamente a bebê-la.

Pois.

As pátrias também têm habitantes assim.

Por isso mesmo é que elas são tão fascinantes.

 

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