Folhetim | Benvinda – Uma História de Emigração (6º. Episódio)

CAPA Licinia

FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

 

BENVINDA – Uma História de Emigração (6º. Episódio)

Os olhos de Benvinda brilhavam como costumam brilhar os olhos das mães quando falam dos filhos. Seja por alegria, por saudade, por desgosto, brilham.

Foi quando arranjei trabalho como “concierge” que tivemos direito a casa, pequena, mas uma casa, foi uma vida melhor, foi, depois daqueles dois anos tão maus, mas tão maus, que até me dói falar deles. Às vezes ainda tenho sonhos ruins de voltar a morar no contentor, de ver as crianças a brincarem na rua, ao frio, que aquilo é que são invernos de frio, e a neve lá é mais fria do que a que havia aqui no tempo de guardar as vacas. Mais fria e mais suja, da cor da lama. Chego a acordar a chorar e o meu homem diz que falo enquanto durmo, mas ele não explica o que digo. Melhor assim, não sou eu a falar, a gente sabe lá quem é no meio dos sonhos.

Depois que conseguimos finalmente uma casa para morar, um dia disse ao meu Bento, isto não pode continuar, eles têm de vir ter connosco. Custou-me convencê-lo, mas tanto lhe moí o juízo que ele acabou por concordar. Já que pergunta, digo-lhe que fomos buscá-los à Espanha, para onde um passador os levou, os meus ricos meninos, por caminhos desgraçados que só eles sabem. Ele era ainda muito pequeno, não se lembra, mas ela, já crescidinha, viu tudo, ouviu tudo, e nunca mais vai esquecer. Não sei se algum dia contará aos filhos, melhor não, mas ela lá sabe o que fazer, a vida é dela, e nunca foi rapariga de me dar ouvidos. Espertalhona não há como a minha Berta, mas brava como gata parida.

Havia a passagem mais conveniente, pelo rio, e foi por aí que o homem se dispôs a passar os miúdos. Era arriscado, mas o preço que cobrava para crianças sozinhas era compensador. Noite escura, a avó os levou até à beira do rio, vão com este senhor que os vossos pais estão à espera do lado de lá. Berta, que tinha feito os seis anos há pouco, que de mundo só conhecia as serras por onde levava as vacas a pastar, que tinha como única riqueza os palácios que inventou nos grandes penedos em cujas grutas se abrigava dos frios, Berta, dos olhos matreiros, já crescida para a idade, contrariando o mau sustento que a avó lhe dava, Berta, a que aprendera com o irmão mais pequeno a brincar de verdade às mães e aos filhos, já que para fingir boneca nunca teve, Berta agarrou com força a mão de Basílio, pequenina e frouxa, deu um beijo de raspão à avó e acompanhou o homem sem rosto que a noite escura não deixava ver.

(continua)

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