Crónica de Alice Vieira | Dia de finados

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 Dia de finados
Alice Vieira

 

As tias que me criaram tinham todas o culto exacerbado da morte.

Não ligavam muito aos vivos—mas ninguém lhes levava a palma no choro pelos mortos.

Podiam estar anos sem ver uma pessoa mas, no dia do seu enterro, não largavam o caixão até ele descer à terra, sendo sempre muito acarinhadas pelos presentes que, diante do seu choro convulsivo, as tomavam por familiares muito próximas do defunto quando, na maior parte das vezes, não passavam de simples conhecimentos das termas de Caldelas.

Uma vez cortaram relações com um irmão. Coisa séria, metia negócios de saias e, naquele tempo, negócios de saias eram as coisas mais sérias e indesculpáveis numa família de bem.

Ninguém podia sequer pronunciar o seu nome lá em casa.

O senhor morreu—e tudo, de repente, mudou. Não só passou imediatamente à categoria de melhor pessoa do mundo, “no fundo, no fundo, ela é que o levou a fazer o que fez, a gente já sabe como são essas mulheres…”, como deu início a um ritual que se prolongou até muito depois de eu ter saído lá de casa.

O ritual das quartas-feiras.

Todas as quartas feiras, fizesse sol ou fizesse chuva, lá marchavam  aquelas almas para o Alto de São João.

Levavam banquinhos para se sentarem (o dia ia ser longo…), e um cesto para onde tinham enfiado esfregões, sabão macaco, trapos velhos, batas.

Chegavam junto da campa do irmão, tiravam o material da cesta e vá de lavar e esfregar tudo que era uma limpeza.

Um dia olharam em volta e acharam que a sua missão estava a ser incompleta. A partir dessa quarta feira, assim que entravam os portões do cemitério chamavam pelo Sr. Salvador, que era o coveiro. Sempre achei estranho que um homem que tinha por missão enterrar pessoas se chamasse Salvador, mas o destino tem destas coisas.

O Sr. Salvador começou então a ter por missão pô-las a par das últimas aquisições do cemitério, ou seja, quem tinha morrido naquela semana, em que sítio estavam as campas, quem eram, se os funerais tinham sido concorridos, se a família já lá tinha voltado, etc,etc,etc.

Eu era pequena mas lembro-me que gostava de ouvir a conversa do Sr. Salvador, sempre em tom monocórdico como se repetisse ladaínhas, e que pelo meio das histórias coçava a cabeça, olhava para o céu e repetia “morrer não custa nada, estar vivo é que é um sarilho dos diabos…”

As minhas tias concordavam, arregaçavam as mangas, vestiam as batas que levavam no cesto, e punham-se ao trabalho.

De esfregões em punho, depois de convenientemente tratada a campa do irmão, desatavam a limpar todas as outras campas como se não houvesse amanhã.

Esfregavam a pedra mármore, esfregavam as placas, uma vez, duas vezes, as vezes que fossem necessárias para ficar tudo a brilhar, e depois tiravam as flores velhas, as folhas que tinham caído das árvores e tudo ficava um primor de asseio.

Juro que, por vezes, até me parecia que as ouvia cantarolar em voz baixa. Como se estivessem a acabar de limpar a cozinha.

Nunca me lembro de ter contado quantas campas limpavam, mas eram muitas.  Até porque todas as quartas feitas havia sempre campas novas a requererem os seus cuidados. E lá ficavam com o Sr.Salvador, a falarem daqueles mortos todos como se os tivessem conhecido desde sempre.

Dava para eu me sentar num dos banquinhos e ler o “Mosquito” de uma ponta à outra.

E quando chegava o mês de Novembro, os seus olhos até brilhavam : era o seu mês de eleição.

A nossa casa enchia-se de crisântemos por tudo o que era jarra—e, ao telefone, eu ouvia-as a convidar amigas muito próximas para as acompanharem nas tarefas do dia 1 e 2.

Porque, como só um dia não chegava para tanto trabalho—até porque, em novembro, ao Alto de S. João juntava-se também os Prazeres– começavam logo na véspera. Festejar todos os santos e todos os mortos até nem calhava mal de todo.

Naqueles dois dias nada mais existia para elas.

Como bem se pode entender, fiquei vacinada desde muito cedo contra o espectáculo mórbido da morte.

Cemitério é lugar onde raramente entro. Acompanho os velórios dos amigos, claro—mas fico aí. Até porque, para mim, não só não há um dia marcado para recordar os meus mortos, como os meus mortos não estão nos cemitérios: estão no meu coração, andam por aí, sinto-os sempre vivos e até falo com eles… Só gosto de os recordar em alegria, e estou-lhes imensamente grata por tudo o que me deram, por tudo o que me fizeram viver a seu lado, e porque, se não fossem eles, eu não seria a pessoa que sou.

Por isso quando no calendário aparece o Dia de Finados, eu tenho um leve sorriso a pensar nas tias – e encho a casa de flores (nunca de crisântemos!) para em alegria festejar aqueles que, embora invisíveis, nunca deixaram de estar ao pé de mim.

 

 

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One Thought to “Crónica de Alice Vieira | Dia de finados”

  1. maria silvéria dos Mártires

    e encho a casa de flores( nunca de crisântemos)
    para em alegria festejar aqueles que ,embora invisíveis nunca deixaram de estar perto de mim.”
    Gostei muito principalmente esta parte final.Muito obrigada, vou partilhar desculpe…..

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