Crónica | Alexandre Honrado Utopias no divã

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Estudando, quase viciosamente, o ano de 1917, todas as matérias me despertam novas interrogações e a vontade de ter todo o tempo do mundo para ler toda a bibliografia do mundo que me possa conduzir a algumas respostas tem crescido de uma forma incontrolável.

Tenho milhares de páginas à minha volta – quase mil escritas por mim ao longo de doze anos de bisbilhotice e incredulidade, pouca matéria conclusiva e muitas catapultas para os textos seguintes.

O ano de 1917 não foi mais inquietante do que muitos, mas na História do Mundo e de Portugal em particular assina acontecimentos tão determinantes que resolvi ficar por aqui a ver o que isto é. Uma das unidades temáticas em que me debruço é aquela que, do lado das religiões, me possa cativar enquanto investigador da área. Uma área sinuosa, difícil, onde, na maior parte das vezes, a fé é destruída pelo formato das crenças e das instituições que as recrutam.

Indo eu a caminho de Moscovo, pensando em Marx – de acordo com Marx, a consciência religiosa equivalia ao “suspiro da criatura oprimida” – dou comigo com um dos conflitos, na época muito em voga, opondo secularistas e religiosos, em visões opostas erradamente, apercebido como um conflito do que aparentemente seria inconciliável entre visões religiosas e científicas.

De texto em texto, vou parar a um onde se destaca o projeto secularista do comunismo russo. Nele, os médicos soviéticos diagnosticavam o crente como um sofredor, uma pessoa atormentada por “sentimentos religiosos” crónicos.

Já encontrei, é claro, textos opostos, em que se propõe a “cura do ateu” por processos medicinais (um deles com banhos frios e choques elétricos, prática que se usava sobre militantes comunistas até no nosso país). Na velha União Soviética falava-se de pathologia religiosa quando se identificava  a fé religiosa no indivíduo, e o diagnóstico conduzia a “tratamento”, em especial no campo da psiquiatria. No velho Portugal do Velho, falava-se em subversão. As diferenças religiosas – ou as  questões de “género”, por exemplo –acabavam invariavelmente na manipulação do “doente” e (invariavelmente também) na sua morte ou incapacitação psicológica e/ou motora. Caso a caso o que identificamos é a prática continuada da violação de direitos humanos, da perseguição e repressão da liberdade religiosa, em suma um ataque aos seres humanos – e ao Humanismo de forma geral.

Ninguém se converte por decreto e se o medo algumas vezes anula a exteriorização do que se sente, está para nascer o primeiro crente feito pela arma apontada. Os radicais devem torcer-se de vergonha ao perceberam que nunca converteram ninguém ao seu Deus (ou à Sua ausência).

O proselitismo é a face antiética de uma vida livre capaz de opções totais. Há cem anos, a utopia de uma sociedade livre e laica fazia nascer a distopia de uma sociedade de hospícios e de tumbas. A história está cheia desses exemplos. Basta que a um outro se lhe oponha, julgando ambos serem a verdade (ou representantes da divindade das suas melhores alegrias e boa intenções).

 

Alexandre Honrado

Historiador

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